7.9.09

Os descolados e os arcaicos

No último final de semana, numa reunião de amigos em Santo André, num bar que costuma reunir a porção adolescente da cidade que, a princípio, parece ser mais “descolada” em relação aos jovens que costumam assistir ao enlatado global Malhação ou ler a revistas como a Capricho, enquanto ainda comemorávamos a vitória da seleção brasileira sobre a rival Argentina, em determinado momento, discutíamos sobre a relação que alguns filósofos possuem com seu tempo histórico. Não lembro exatamente o que nos levou ao tema da conversa, mas lembro que, talvez ainda sob o efeito entorpecente do futebol (pois creio que o álcool não causaria isso), preferi ficar longe de tal discussão, ou talvez por temer o tom impositivo de meu amigo e ex-companheiro de Woodstock (antiga república existente no tempo em que estudávamos na Fundação Santo André), Luiz Henrique, que sempre envolve-se muito mais profundamente nas discussões que qualquer um de nós, causando certa intimidação (devido a seu tom de voz e até mesmo expressão corporal) em quem tenta ir contra seus argumentos. O que lembro, e o que ficou em minha mente, fazendo-me lembrar da idéia no dia seguinte, foi o argumento surgido, e defendido por muitos, de que certos filósofos cuja qualidade destacada muitas vezes faz referência ao fato de estarem “a frente de seu tempo”, na verdade aponta para um juízo equivocado sobre suas idéias e sobre a interpretação do que vem a ser alguém a frente de seu tempo.

A idéia levantada, não sei por quem, contrapõe a noção de estar “a frente de seu tempo”, afirmando que, na verdade, esses pensadores não estão a frente de nada, mas sim imersos de tal modo em seus tempos que produziram idéias e noções que refletiam com maior veracidade a realidade objetiva na qual se encontravam. Talvez possa ser dito (não sei se a linha da discussão apontava para isso, pois prestei porcamente atenção na conversa) que idéias a frente de seu tempo não são possíveis, pois mesmo os idealismos que, em forma de ideologia (na sua noção marxista), mascaram a realidade objetiva, são frutos de uma “sedimentação social” (roubando o termo adorniano). Desse modo não há possibilidades reais de que se produza algum pensamento que não esteja preso a seu tempo e espaço físico, mesmo se tratando de um idealismo que procure ocultar essa realidade objetiva, pois até mesmo para isso precisa de tal realidade para ser ocultada.

Os descolados e os arcaicos

Já a algumas semanas venho acompanhando um programa da emissora MTV chamado Descolados. Trata-se de um seriado, publicitariamente falando, voltado para um público, acredito, na faixa etária de 18 até uns 25 anos (faixa a qual eu me encontro em relação de exterioridade, caso levemos em consideração unicamente o tempo físico), que tem como personagens principais três jovens (incluídos nesta faixa etária) que, por uma série de acontecimentos que os leva a conhecerem-se, decidem dividir um apartamento no centro de São Paulo. O que me chama atenção neste programa é a forma como o comportamento e a própria cidade de São Paulo, bem como a relação que os personagens possuem em relação a ela, são expostos de modo a, juntamente com outros aspectos não observados racionalmente, mas intuídos por mim, formarem um “projeto” (não sei se esse seria o termo correto) de criação de uma “estética paulistana”, uma certa identidade espiritual que busque divulgar e ampliar, para uma certa faixa da porção jovem da sociedade, um conjunto de hábitos de consumo, (a)morais e linguísticos encontrados, atualmente, numa parcela menor desta mesma porção da sociedade. Além de divulgação e ampliação, o caráter aqui também é de afirmação.

No seriado da MTV temas como sexualidade, drogas (incluindo álcool), estrangeirismos, relações familiares não são tratados ou discutidos no enredo de seus episódios. Estes temas são simplesmente vividos pelos personagens, sugando o espectador para dentro da realidade da trama, sem colocá-lo como aquele que deve entrar dentro de uma discussão acerca das possíveis polêmicas envolvidas a partir de alguma regra moral vigente. A linguagem do seriado não apega-se ao formato de programas globais (da Rede Globo de Televisão) que parecem colocar os mesmos temas, de modo frequente, dentro de uma discussão na qual o personagem, em crise, parece viver uma situação em que se deve tomar partido desta ou daquela decisão que será determinante para sua vida: assumir ou não sua sexualidade, seus vícios, suas relações sociais.

os descolados

Não sei bem o que pensar destas diferenças aqui colocadas de modo muito vago. Talvez possa-se apontar, de modo indutivo, que a MTV representa as opiniões de um grupo (situado na cidade de São Paulo) que se opõe aos moralismos de um grupo maior (situado na cidade do Rio de Janeiro): talvez acreditar que a indústria cultural conseguiu unificar o pensamento de cada região, de modo a nivelar o modo de pensar dos grupos, apagando definitivamente seus respectivos desmembramentos históricos, seja pura ingenuidade ou debilidade crítica. Mas se observamos bem a realidade a nossa volta, talvez possamos identificar exatamente qual emissora consegue refletir, a sua maneira, as relações sociais entre os jovens de modo mais veraz.

Creio que a MTV não fala para as massas. A emissora, filial da norte-americana, fundada no Brasil em meados do início dos anos 90, sempre falou para uma minoria de espectadores. Sempre presa aos pacotes oferecidos pelas tevês por assinatura ou ao formato de frequencia conhecido como UHF, a MTV sempre entrou numa quantidade reduzida de lares em todo país. Não há como negar que, na segunda metade dos anos 90, a emissora passava por uma reestruturação em seu conteúdo, abrindo-se para músicas mais populares (pagode, axé), mas por algum motivo, e creio que pela própria fidelidade dos espectadores que pertencem à faixa dos “descolados”, ela teve que dar um “passo atrás” no seu projeto de popularização. A MTV não deixara de expandir-se, mas, curiosamente, sua expansão dava-se dentro da representação do modo de vida da parcela da sociedade que a financiava e dava credibilidade. A MTV nasceu descolada, tentou negar sua origem, mas foi pressionada por sua própria ontologia. A ideologia que a alimentou (e que ela alimentava) parecia imanente a sua existência. A MTV mudou, mas nunca conseguiu de fato desligar-se dessa característica.

O que vemos hoje é uma emissora que afirmou-se dentro de sua característica imanente (não posso apontar exatamente o que a levou a, enfim, afirmar-se dentro desta característica, devendo me prender a meus argumentos redutivistas). Suas produções sempre parecem existir a parte das demais produções televisivas encontradas nas demais emissoras. Mesmo na utilização de formatos já existentes (por exemplo, o formato de programa esportivo), a emissora paulistana parece trazer suas produções para um modo de vida peculiar. Mas algo me faz acreditar que, após anos de existência, a emissora afirma, como nunca, sua forma através do seriado Descolados. Não porque seja polêmica (ela já o foi mais ao defender, embora de modo discreto, campanhas pelo voto nulo nas últimas eleições), nem por ter uma linguagem de vanguarda (pois é perfeitamente compreensível, dentro de idéias pré-concebidas de mercado, tal produção), mas justamente por negar-se a entrar em discussões de cunho moral pequeno-burguês. A MTV, talvez possa-se dizer (e sei o risco de dizer isto), promove a etapa posterior ao choque entre o moralismo hipócrita global e o modo de vida de uma parcela do país que encontra-se totalmente dominada pela cultura globalizada.

A cidade de São Paulo, acredito, é a cidade que tem como identidade paradoxal a sua própria falta de identidade. O poder de consumo de parte de sua população (sei que, em muitos aspectos, é uma minoria, mas uma minoria influente) é o poder de atrair para seus domínios tudo o que a transforma na cidade cosmopolita, no olho do furacão globalizante em nosso país. São Paulo é a cidade sem fronteiras, é a porta de entrada para os estrangeirismos temidos no passado (anos 60) mas presentes, sem resistência, atualmente.

A emissora paulistana é feita por gente que se encontra neste olho do furacão, nasceu justamente para promover este movimento, como realização da indústria que alimenta, devido a interesses econômicos, a produção cultural globalizada. Mas o mais importante, ao olhar para ela, é compreender o debate cultural que pode surgir a partir da disparidade entre suas produções e as produções da Rede Globo de Televisão, há anos a maior emissora do país. A parcela pequena da sociedade que cresceu assistindo a MTV é a mesma que cresceu sabendo que a Rede Globo é a emissora que domina todos os índices de audiência na televisão brasileira, é a parcela da sociedade que foi influenciada pela emissora carioca, mas, em contrapartida, também deixou-se influenciar e influenciou a forma da emissora paulistana. O momento do “passo atrás” que a MTV promoveu, na segunda metade dos anos 90, foi essencial para fazer com que grande parte de sua audiência rompesse com os estereótipos globais e aderissem, agora definitivamente, com os seus estereótipos. A geração de descolados estava formada, a decisão consistia em escolher entre Malhação ou Vinte e Poucos Anos (diga-se de passagem, primeiro reality show produzido no país), entre muitas discussões morais, já objetivamente superadas, da emissora carioca ou a afirmação de um modo de vida que refletia, muito mais fielmente, o modo de vida da classe média paulistana e, por que não dizer, brasileira. Talvez, no início do seu “passo atrás”, a MTV ainda carregasse o isolamento de influenciar pouquíssimos lares, mas a emissora não pretende ser de massas, não pretende atingir, a qualquer custo, altíssimos índices de audiência. A MTV, mais do que um fenômeno televisivo que procura influenciar toda e qualquer classe a qualquer custo, é uma emissora que se apega a um projeto de país que desenvolve-se a partir do ingresso, por parte da população, num certo grau de poder de consumo e, mais ainda, a perda de um certo arcaísmo cultural que ainda pode ser observado, mas é menos observado nos jovens da classe média paulistana. Falo de uma classe que cresceu ouvindo rock alternativo dos anos 90 (embrião do que hoje se chama noise music e que rompe com formas e conteúdos viciados da música vendida pela indústria cultural), que aprendeu a rir do sentimentalismo das novelas, que não mais via em apresentadores como Serginho Groisman a representação de sua juventude. A MTV teve como papel fundamental a denúncia de formatos e estereótipos viciados de um Brasil que, talvez ainda e tardiamente, de forma embrionária, já adquire comportamentos que não mais refletem-se nas telenovelas, mas são unicamente negados por elas em forma de uma ideologia que já iniciou, há algum tempo, seu processo de desgaste.

O paradoxo global

A juventude que rompeu com as formas mais arcaicas e rendeu-se aos estereótipos da MTV é, paradoxalmente, fruto da própria Rede Globo. A emissora carioca que, nos anos 60, fez acordos com a ditadura militar e ajudou a promover, ao longo da história, a alienação política e a falta de experiência histórica mais objetiva e consciente da população brasileira, dos pais e avós da “geração MTV”, criou, no país, a falta de apetite pela própria cultura que pudesse remeter a qualquer aspecto mais veraz do que acontecia no país. A atenção das pessoas deveria voltar-se para o que acontecia fora do Brasil, para toda manifestação cultural que apontasse para uma “sofisticação” não encontrada em nossos territtórios. Os pais e avós da geração MTV aprenderam a amar o que vinha de fora, mas ainda encontravam identidade com aquilo que a Rede Globo produzia. O problema para a emissora carioca é que o movimento que ela defendeu, gerações atrás, agora adquire a posição de pólo oposto. O nacionalismo da Rede Globo (que sempre foi o nacionalismo da mentira) nunca defendeu valores culturais brasileiros (seja lá o que isso queira significar). O nacionalismo da Rede Globo, ao ocultar o próprio país através do culto aos estrangeirismos, sempre teve com projeto a modelação do país por meio de suas aberturas culturais, mas sempre mantendo sob controle o comportamento social surgido a partir de tais aberturas: a ideologia das novelas é a imagem do país que a Rede Globo construiu por muito tempo e espera continuar construindo. De modernizante a emissora de Roberto Marinho transformou-se na imagem (se não do retrocesso) da estagnação cultural de nosso país. Sua antítese mais objetiva, a MTV, é a prova de que suas formas lutam contra o próprio progresso econômico de uma classe que se encontra no olho do furacão do sistema econômico, na cidade mais rica e economicamente influente do país. A luta silenciosa travada pela Rede Globo, a favor de seu arcaísmo, pode ser observada na exaltação do Rio de Janeiro, seja nas novelas de Manoel Carlos, seja nos humorísticos Toma Lá da Cá ou no enlatado adolescente, já citado, Malhação.

os arcaicos

Não se trata de defender a MTV nem mesmo de exaltar suas manifestações de forma isolada. Trata-se de identificar, dentro das relações de poder entre os meios de comunicação, no que consiste sua postura, o que representa o fato de que os personagens de Descolados não possuem nenhuma crise moral no fato de possuírem diversos parceiros sexuais ou de romperem com estruturas familiares convencionais. A emissora paulistana coloca a frente de seus espectadores a geração apolítica, que consome vorazmente o rock filho (mais digerível, é claro) do rock alternativo dos anos 90 (destaco que o expoente musical da mencionada "estética paulistana" é a banda, amplamente divulgada pela MTV, Cansei de Ser Sexy), que não se choca com palavrões nos programas de televisão, que valoriza (paradoxalmente) mais a internet que a própria televisão. A MTV, juntamente com seus espectadores, cultua a internet e não nega seu crescimento: coloca parte de sua programação exclusivamente na rede e, na televisão, trata de apenas divulgar este conteúdo exclusivo, afirmando sua preocupação em manter restrito seu grupo de adeptos, uma vez que a internet no país ainda é acessada por uma minoria. Mas que minoria? A minoria que faz a MTV e, em grande parte (aqui pode-se dizer), que assiste a ela.

Mas o que isso tem a ver com a conversa que meus amigos tiveram no bar em Santo André? O bar ao qual me refiro, e como já mencionei, é o ponto de encontro de uma juventude mais descolada da cidade do ABC paulista, região conhecida pelo alto índice de indústrias (em grande parte automobilísticas) e por, devido a grande concentração de operários, frutos da alta industrialização, engendrar, nos anos 80, as grandes agitações políticas desta classe que reivindicava seus direitos trabalhistas. Mas o ABC paulista não é o mesmo. Ele também sofreu a lavagem que a Rede Globo ajudou a produzir e, embora com mais resistência, caiu nas graças do "País Global". Em relação à cidade de São Paulo a região do ABC paulista ainda é uma periferia das manifestações culturais da geração MTV (o bar em Santo André ao qual me refiro não seria tão descolado assim se estivesse situado na Rua Augusta, na cidade de São Paulo), mas já possui, em locais ainda muito isolados, grupos de jovens que já fazem parte do rompimento promovido pela escolha entre a novela da emissora carioca ou o descolamento da emissora paulistana. No dia seguinte ao encontro com meus amigos, no bar que reúne essa parcela da juventude do ABC, onde vi em poucos a empolgação pela vitória brasileira frente à seleção argentina, não pude deixar de pensar na possível dialética ali presente. A juventude entregue ao descolamento nem mesmo empolga-se com um símbolo nacional tão forte como o futebol, parece, a princípio, indiferente aos modismos da novela das oito (ou nove?), parece estar vivendo em outro país, diferente daquele que meus pais ou referências mais velhas vivem. A geração MTV parece estar a frente de seu tempo, mas apenas parece, e aqui o argumento da conversa nos salva de cair em tal interpretação.

A geração MTV está mais presa a seu tempo que a geração Malhação; a geração MTV representa aquilo que a crescente classe média brasileira está se tornando. As relações sociais promovidas pelo capital estão muito mais próximas da aparente amoralidade exposta pelas produções da emissora paulistana do que pela emissora carioca. As discussões colocadas pela Rede Globo de Televisão (discussões já resolvidas pelas suas produções, mas que sempre procuram dar a seus espectadores a sensação de que há de fato uma reflexão, uma liberdade de pensamento) não ocupam objetivamente uma sociedade que já vive, sem refletir, assim como os personagens descolados da trama da MTV, os novos valores do processo plantado, e agora fora de controle, da própria Rede Globo de Televisão. A juventude apenas manifesta de modo mais espontâneo aquilo que seus pais ainda insistem em esconder de si mesmos, refugiando-se nas novelas da emissora carioca.

Não há vanguarda sem crítica

Mas tomemos cuidado com a comparação. Estar a frente de seu tempo, que como vimos aponta para o fato de, na verdade, reconhecer melhor seu próprio tempo, nem sempre é manifestação crítica do presente. O que coloco como positivo neste tipo de manifestação cultural aqui abordada (talvez de forma um pouco confusa) é que ela oferece material para a crítica da sociedade. Em um tempo em que a televisão ocupa grande parte dos lares brasileiros, compreender as relações políticas e culturais existentes entre seus produtos torna-se grande janela para tentar compreender o modo de vida de nossa sociedade. Nos anos 60 o Tropicalismo, enquanto fenômeno estético, soube muito bem lidar com estes produtos e apresentá-los dentro de sua imanente dialética. Compreender o que há de arcaico e moderno, abstraído de seu tempo e preso a ele, manifesta-se como um estar a frente mais consciente do que qualquer outro: ele não se reconhece como síntese que necessita de objetivação (pois antes parece surgir em forma de idéia), mas sim como manifestação objetiva da tensão, ou melhor dizendo, como a própria tensão entre os dois pólos. Se existe algum grupo de artistas ou pensadores de qualquer tipo que, nos dias de hoje, procurem se manifestar, na arte ou na produção intelectual, no que se chamaria aqui de vanguarda (manifestação mais fiel da tensão do real), faz-se necessário que reflexões que partam da sedimentação social (mais uma vez utilizando o termo adorniano), do material das manifestações culturais de nossa realidade não deixe de ser algo buscado. Talvez possamos dizer que, assim como os Tropicalistas no final dos anos 60, este grupo de artistas ou pensadores sejam, de fato, os verdadeiros descolados da sociedade, embora conscientemente presos a ela, de modo animadoramente paradoxal.

8.8.09

Há metafísica bastante em não pensar em nada...

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.


_____________________Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

28.7.09

Gripe de gripe


Eu nunca fui muito bom de matemática, mas tem coisas que são óvias até para o pior dos alunos nesta disciplina.

Contem comigo:

POPULAÇÃO MUNDIAL: 6,6 bilhões ou 6 600 000 000
NÚMERO DE MORTOS NO MUNDO PELA TAL GRIPE SUÍNA: 800

Acompanhemos agora as médias dos números de mortes ocorridas por outras causas, somente este ano:

MALÁRIA: 576 607
HIV: 7 300 950
ACIDENTES DE TRÂNSITO: 155 144
TABAGISMO: 1 801 892
PESTICIDAS: 10 812

E ainda:

Média do número de mortes somente este ano: 34 760 000
Média do número de pessoas famintas pelo mundo: 273 750 000


E o pior é que não se fala em outra coisa. O medo é praticamente generalizado. Estou aqui em casa com princípio de pneumonia, mas minha mãe usou como argumento o "perigo da gripe suína" para que eu fosse ao médico (coisa que eu evitei até o último momento). Quanto será que a pneumonia matou este ano? Que medo! É, meus amigos, a mídia é a voz da verdade! É das ondas do rádio, das imagens da TV que o absoluto se faz real, que o mundo é moldado da maneira que alguns bem entendem.

Creio que os detentores do poder devem estar comemorando. Esta farsa é uma das mais bem sucedidas da história! Os motivos? Eu sei lá...

Em tempo: Para uma população de aproximadamente 191.481.045 pessoas, os casos de morte por gripe suína no Brasil não chegam nem a 1%, ficando em 0,01%, por aí. É só consultar os números pelo site do ministério da saúde. O SUS afirma que está pronto para enfrentar a tal gripe! Também, se não estiver pronto nem para isso é melhor mesmo que feche as portas...


FONTES:
http://www.worldometers.info/pt/
http://portal.saude.gov.br/saude/

27.6.09

O Amor e o Poder

Estudar fixamente algo pode nos fazer descobrir coisas muito engraçadas. Lembro que tinha uns 5 ou 6 anos quando a música “O Amor e o Poder”, interpretada pela desaparecida cantora Rosana, explodia nas paradas de sucesso da indústria cultural. A música é versão de uma música gringa, sua letra é de autoria de Cláudio Rabello e, se não me engano, foi tema de novela da Globo, coisa e tal. O que eu não esperava é que, mais de 20 anos depois, eu encontraria, na filosofia de Adorno e Horkheimer, uma interpretação para esta famigerada música dos anos 80. A letra desta música é pura referência à trajetória do esclarecimento e sua regressão ao mito, que decorre da busca pela dominação da natureza pela racionalidade instrumental. Quem presta atenção na letra pode, a partir desta interpretação, tentar entender melhor o núcleo argumentativo da obra Dialética do Esclarecimento, dos nossos filósofos de Frankfurt.

Senhoras e senhores, com vocês, "O Amor e o Poder":

A música na sombra,
o ritmo no ar

Sombra, música e ritmo. Aqui temos referência a uma natureza obscurecida pelo desconhecimento acerca de seus elementos. A música e o ritmo referem-se a uma forma mais intuitiva de lidar com a natureza, uma forma irracional que ainda não passava pelos critérios da razão ordenadora que se iniciaria posteriormente.

Um animal que ronda
no véu do luar

O "animal que ronda" também faz referência ao desconhecido, mas agora fala dos perigos que podem estar nesta realidade obscurecida. Ele alimenta o medo que o homem possui do desconhecido devido a seu instinto de sobrevivência, ele está em volta e remete ao momento em que o homem encontrava-se integrado ao natural, não havendo ainda a abstração mítica. A noite é colocada como oposta ao dia iluminado. Iluminado pelo que? Pelo esclarecimento. O “véu do luar” é a contraposição às luzes da razão.

Eu saio dos seus olhos
eu rolo pelo chão
Feito um amor que queima
magia negra
Sedução

O instinto de sobrevivência, ou o que Adorno e Horkheimer chamaram de autoconservação, é a "sedução" que leva o homem a iniciar a abstração da natureza. “Eu saio dos seus olhos, eu rolo pelo chão” é justamente o início da separação entre sujeito e objeto. A natureza “sai dos olhos”, não compõe mais, com o sujeito, uma síntese. Ela “rola pelo chão”. É o momento no qual o espaço físico, presente nesta passagem, começa a integrar os critérios racionais de apreensão da realidade – vide Kant. A magia é o meio, através do ritual, pelo qual o homem fez suas primeiras tentativas de controlar a natureza ao seu redor. Esta passagem completa expressa a confusão existente no processo de abstração da natureza que ainda se prendia aos rituais mágicos da antiguidade.

Como uma deusa
você me mantém
E as coisas que você me diz
Me levam além

O surgimento dos mitos! A natureza torna-se a deusa mantida pela linguagem. As coisas que o homem diz, as narrativas míticas levam o natural ao além (além mundo), caracterizando de forma determinante a abstração entre homem e mundo. A epopéia de Ulisses já trazia, na passagem do ciclope Polifemo, o início do logro das forças da natureza pela linguagem ambígua que, como vemos na música, pode levar a natureza ao além, mas também a outras realidades. Na abstração tudo é possível.

Aqui nesse lugar
Não há rainha ou rei
Há uma mulher e um homem
Trocando sonhos fora da lei

Temos aqui a realidade do natural. Homem e mulher representam, alegoricamente, a ambiguidade existente na relação entre ela e os homens. Os sistemas criados pelo homem, as hierarquias que se iniciaram nos mitos, as leis de uma racionalidade que se desdobraria até o esclarecimento estão sempre dentro desta ambiguidade. Neste “lugar” (a natureza, o mundo fora da abstração humana) não há espaço para sistemas ou hierarquias, “não há rainha ou rei”. Há dois opostos que se complementam, trocando “sonhos fora da lei”, ou seja, fora dos imperativos racionais, seja nos mitos ou no esclarecimento. Os sonhos remetem a tudo que não se enquadra no mundo organizado pelo discurso.

Tão perto das lendas,
tão longe do fim
A fim de dividir
no fundo do prazer
o amor e o poder

“Tão perto das lendas” é a regressão da razão ao mito. Dentro da abstração, a razão busca estabelecer-se como fim em si mesma em detrimento do natural, mas esse isolamento, ao ignorar o natural que encontra-se fora de seus critérios, ignora o irracional que é também o real. O esclarecimento está “longe do fim” que ele mesmo estipulou, ou seja, o fim em si mesmo que busca separar a afinidade (amor) com o natural dentro de uma relação de poder com ele. A dominação da natureza pelo esclarecimento busca dividir o prazer instintivo que não contribui, de acordo com ele, para o surgimento da civilização. O prazer precisa ser suprimido pela razão, dando origem ao reprimido freudiano. Deste modo, a razão do esclarecimento, ou seja, a razão instrumental que está, dentro de sua regressão ao mito, “tão perto das lendas”, também está longe de ser o fim em si mesma. Está “tão longe do fim”, mas não deixa de tentar dividir no “fundo do prazer”, ou seja, na relação imediata com o natural, o amor e o poder, a afinidade e a dominação.


Palmas para o Sr. Cláudio Rabello que, agora ficamos em dúvida, talvez tenha estudado as teorias de Adorno e Horkheimer. E palmas para a cantora Rosana! Por onde quer que ande...

19.6.09

Marginália II

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
________________Torquato Neto / Gilberto Gil

11.6.09

Não Identificado

Eu vou fazer
Uma canção pra ela
Uma canção singela
Brasileira
Para lançar depois do carnaval

Eu vou fazer
Um iê-iê-iê romântico
Um anticomputador sentimental

Eu vou fazer
Uma canção de amor
Para gravar num disco voador

Uma canção
Dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho
Apaixonado
Para lançar
No espaço sideral

Minha paixão
Há de brilhar na noite
No céu de uma cidade
Do interior
Como um objeto não identificado

Que ainda estou sozinho
Apaixonado
Como um objeto não identificado

______________Caetano Veloso

31.5.09

Bananas ao Vento!!!

"A Tropicália veio contribuir fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui: na verdade quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo – nossa cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disso que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita européia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio. (...) É a definitiva derrubada da cultura universalista entre nós; da intelectualidade que predomina sobre a criatividade – é a proposição da liberdade máxima individual como meio único capaz de vencer essa estrutura de domínio e consumo cultural alienado."
________________Hélio Oiticica

Habermas e os Pragmáticos Universais

"Como os membros de um sistema social que atingiram um certo ponto de desenvolvimento das forças produtivas teriam interpretado coletivamente e com força de lei suas necessidades, e que normas aceitariam como justificadas, se tivessem podido e querido se encontrar de posse de um conhecimento suficiente das condições marginais e dos imperativos funcionais de sua sociedade para tomar discursivamente suas decisões sobre organização das relações sociais?" (WIGGERSHAUS, 2006: 671).
Em sua obra Problemas de Legitimidade no Capitalismo Tardio, Habermas coloca a pergunta que, em muitos aspectos, parece orientar grande parte de seu esforço intelectual. A busca por uma crítica social na qual a teoria e a prática convertam numa racionalidade que possa explicar e ao mesmo tempo justificar. A discussão entre teoria e prática e a tensão entre sujeito e objeto colocada pela primeira geração da Escola de Frankfurt ganharia, nesse filósofo, novas reflexões. Trata-se de uma nova postura frente à razão, uma nova teoria que inclui nela a própria prática, sendo, ao mesmo tempo justificativa e explicativa.
Segundo Habermas, a razão se constitui na linguagem ou no que podemos chamar de comunicação intersubjetiva, pois apenas nesta comunicação que chegamos ao entendimento. A pragmática universal pressupõe os elementos justificativos e explicativos para investigar, através de suas idéias críticas, as condições universais que tornam possível o entendimento. O argumento universal, segundo Habermas, não é aquele que é imposto por alguém, mas que se impõe a todos. As idéias que nascem a partir de condições universais constituem uma série de normas que permitem uma crítica cuja justificação não depende mais de heranças históricas. Essa crítica confrontaria, desse modo, as idealizações sociais com seus processos objetivos. A linguagem, nesse momento, ganha novo status ao ser a realização da crítica social surgida na conversão entre sujeito e objeto.
Dentro desse conjunto teórico Habermas tem como um dos temas principais as ciências. A reivindicação da ciência como detentora de toda racionalidade e objetividade faz com que ela alcance uma relação com a vida que a torna evidência em si. A dominação encontra fundamento no fato das relações de troca tornarem o trabalho dependente do mercado, enquanto idealização, condicionando as relações concretas dos homens com os objetos e dos homens entre si.
A forma como conheço o mundo está diretamente ligada às idealizações nascidas das relações de mercado. Se retiro do objeto aquilo que o mercado atribui a ele e que obscurece as relações de exploração responsáveis pela sua existência, logo o interesse que tenho sobre esse objeto, que até então era determinado por aquilo que o mercado atribuiu a ele, desaparece. No conhecimento científico, se retiro todas as afirmações determinadas por uma ciência idealizada, pautada pela técnica, que por sua vez é determinada pelo mercado, minha postura e relação para com a vida e a ciência que produzirei a partir disso será outra. Em outras palavras, as ciências empírico-analíticas fazem parte da reprodução social e é nela que encontram sua condição de possibilidade.
Além das ciências, a investigação de temas como democracia e Estado também ocupam os escritos de Habermas. O filósofo perguntava se a violência e a dominação permaneciam apenas como negação da história, num processo de alienação, ou se elas, afinal, seriam categorias históricas suscetíveis a modificações. Com isso ele enxergava a possibilidade de, através de organizações de vida pública, promover tais modificações substanciais nas estruturas sociais. A pragmática universal de Habermas, dentro dessas investigações, oferecia contexto de uma crítica que observa o mundo, o homem e a história dentro de uma totalidade que ganha imanência talvez nunca vista, nem mesmo no marxismo ou nos demais filósofos de Frankfurt.


Referência Bibliográfica
WIGGERHAUS, ROLF. A Escola de Frankfurt. Trad. Lilyane Deroche-Gurgel e Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Difel, 2006.

5.2.09

Tudo Que Eu Sempre Sonhei

Essa letra é da música que compõe o novo álbum dos Pullovers, banda que eu costumava acompanhar há algum tempo e agora voltou a me engraçar. As composições, agora em português, revelam um grande amadurecimento musical de seu membro fundador, Luiz Venâncio, além do grande talento dos novos integrantes para utilizar elementos de música brasileira e rock.
Mas o principal motivo pra colocar a letra da música é seu próprio contexto. O pessoal da filosofia vive discutindo, sofrendo e se conflitando com as questões colocadas por ela. Muitíssimo divertida, dedico ao meu amigo Beat que, em seus versos etílicos, já tratou sobre muitas coisas que estão colocadas nela...

"Sempre pensei que aconteceria, de criança acreditava nos adultos que era só pagar pra ver.
Feio, meio assim desconfiado, perna em xis, já barrigudo, duvidando que eu conseguisse crescer.
Mesmo assim, contudo, o tempo foi passando e eu fui adiando, mudo, os grandes dias que ia conhecer.

Quem sabe amanhã? Próximo ano? O Cebolinha com seus planos infalíveis ia me ensinar a ser Forte, corajoso, bom de bola, um dos bonitos da escola muito embora eu não fizesse questão.
Ainda bem que eu sou brasileiro, tão teimoso, esperançoso, orgulhoso de ser pentacampeão,
já que se eu fosse americano pegaria uma pistola e a cabeça ia perder a razão:
mataria quinze na escola, estouraria a caixola e apareceria na televisão.

Pois então cresci, de insulto em insulto eu me vi como um adulto, culto, pronto pra o que mesmo? Já nem sei.
Olho e não encontro, penso se não fui um tonto de acreditar no conto do vigário que escutei.
Não tem carro me esperando, não tem mesa reservada, só uma piada sem graça de português.
Não tem vinho nem champanhe ou taça, só um dedo de cachaça e um troco magro todo fim de mês.

Tudo o que eu sempre sonhei.
Tanto que eu consegui...
É tão bom estar aqui...
Quanto ainda está por vir...

Mas bobagem, quanta amargura, aprendi que a vida é dura, agora é pura questão de se acostumar.
Basta ter coragem e finura e o jogo de cintura aprendido dia a dia, bar em bar.
Pra que reclamar se tem conhaque, se na tevê tem um craque e o meu timão só entra pra ganhar?
Pra que imitar Chico Buarque, pra que querer ser um mártir se faz parte do momento se entregar?

E por fim tem até namorada, bonitinha, educada, séria, tudo o que mamãe vive a pedir.
Tem beijinho e também trepada e a consciência pesada a cada nova vontadinha que surgir
de outra mulher, de liberdade, de um amor de verdade, de poder fechar os olhos e sorrir,
pensando que então, dali pra frente, seja qual for tua idade, o melhor ainda vai estar por vir!

Tudo o que eu sempre sonhei.
Tanto que eu consegui...
É tão bom estar aqui...
Quanto ainda está por vir...
Tudo o que eu sempre sonhei.
Tanto que eu consegui...
É tão bom estar aqui...
Quanto ainda está por vir, eu sei."

__________Luiz Venâncio



Ah, o novo álbum dos Pullovers sai em março deste ano!

19.1.09

Escravidão ou fome

Daí o operário é “convidado” a mudar de turno na fábrica onde trabalha. Por algum motivo, que é alheio ao nosso conhecimento e, ao mesmo tempo, irrelevante para o texto presente, o operário resolve recusar o tal “convite” dizendo que, mesmo que seja despedido, não deseja ficar no novo horário. Ao receber a notícia o supervisor do operário o demite, afirmando que é tudo ou nada. Pois bem, é nada! Imediatamente após o ocorrido o operário troca sua roupa de trabalho por suas roupas normais e se despede dos colegas de trabalho, passando pelo setores mais próximos a ele.
Os comentários que seguem após tal acontecimento animam um festival de reproduções de falas que caberiam muito bem aos patrões da empresa, mas que, nas bocas dos empregados, parecem com dublagens mal feitas, onde não se associa naturalmente a voz ouvida ao ator filme. Alguns empregados da fábrica e o responsável por estes operários iniciam uma série de comentários que tratam de criticar a atitude do agora ex-funcionário, afirmando que é uma irresponsabilidade recusar um emprego em meio a uma crise como esta, onde já há tantos desempregados. Ouve-se julgamentos do tipo “esse cara não quer trabalhar” e até mesmo “em que mundo ele vive?”.
Sim, para muitos o ex-funcionário da tal empresa está errado, agiu de forma irresponsável, pois deveria baixar a cabeça para uma “simples troca de horário”. Por estarmos em meio a uma crise onde há um aumento considerável do desemprego em nosso país e no restante do mundo o operário deveria aceitar a condição de uma peça substituível e curvar-se a uma imposição que não era de seu agrado.
Mas que diabos há com esse pessoal? Até quando vão justificar o fato de que eles simplesmente não têm a menor coragem de enfrentar o patrão e, a partir de pequenas coisas como essa que foi aqui colocada, põe-se a aceitar todos os mandos e desmandos surgidos da sala da diretoria? Claro, não se trata apenas de coragem, sei bem. A questão é mais profunda, pois há uma carência de consciência, de “pés-no-chão”, de análise da realidade fora de um véu ideológico que envolve todos os críticos do ex-funcionário da tal empresa.
Afinal, como explicar que a ameaça implícita que diz “ou aceita minha condição ou correrá o sério risco de passar necessidades materiais” é utilizada como combustível da “peleguice” de tantos empregados que adotam as falas de seus patrões como suas próprias falas, dando existência ao fenômeno da dublagem mal feita? Sim, a crise tem seu lado bom para os patrões. O medo de perder o emprego e, consequentemente, de ficar sem dinheiro para pagar as contas, para comprar comida ou ainda para satisfazer a tantas outras necessidades e inutilidades da vida no capitalismo tardio são o calcanhar de aquiles no qual se apóiam os patrões para obterem aquilo que bem entendem dos empregados. A crise, ao gerar um grande número de desempregados, aumenta ainda mais os medo dos empregados, mas, ao mesmo tempo, também aumenta o poder dos patrões sobre eles, pois estes agem sobre os funcionários como um adulto que ameaça uma criança de tirar-lhe o brinquedo caso não se comporte bem. A ameaça do adulto sobre a criança legitima, inclusive, discussões como as ocorridas na última semana entre empresários que cogitam a redução dos salários em até 25% para que se amenize o desemprego e, óbvio, a perda de lucro das empresas.
Eis a origem de comentários como esses apresentados acima. Os empregados acabam por segurarem-se como podem, tomando os patrões como a salvação em meio ao caos econômico, pois, ao deterem os meios de produção e sustentarem uma ideologia que exalta o trabalho como meio para superar as crises surgidas na economia, estes deixam de ter o papel de exploradores e passam a ganhar status de salvadores da classe trabalhadora. A consciência individualista é gerada pela falta da consciência de classes onde os trabalhadores se reconheceriam como uma unidade que é a responsável pela produção da riqueza, que paga cada centavo dos seus próprios salários de fome e de cada quilowatt utilizado para fazer as máquinas funcionarem. Ao enxergar de forma fragmentada o trabalhador apenas enxerga a si mesmo, tratando de buscar unicamente seus interesses individuais. Daí a máxima que afirma que é uma irresponsabilidade enfrentar as decisões vindas dos patrões com o risco de perder o emprego e não poder pagar as próprias contas ou comprar a sua comida e da sua família.
O que se ouve ainda na empresa é um funcionário que afirma trabalhar desde sua adolescência e “saber como as coisas funcionam”. Sim, ele sabe bem como as coisas funcionam. Sabe que os empregados são coagidos a aceitarem tudo de bico fechado e sem reclamar, sabe que a realidade é dura quando não se tem um salário que possa pagar a sua sobrevivência. Mas o que o tal funcionário não consegue enxergar é que mudar essa realidade só depende dele e daqueles que, assim como ele, sabem bem “como as coisas funcionam”. O que ele também não consegue enxergar é que o trabalho defendido por ele é o trabalho dos miseráveis que vendem suas horas e seu corpo para que essa maneira das coisas funcionarem continue a existir como uma maldição vinda dos céus, como uma realidade imutável e intocável.
Frente aos acontecimentos apresentados guardo os mais diversos tipos de sentimentos em relação aos funcionários da tal empresa e até em relação a mim. Um misto de vergonha, raiva, revolta e nojo embrulham meu estômago a ponto de acabarem com uma tarde inteira. Ainda há o que se perdoar nestas pessoas. Elas não passaram pelas experiências de trabalhadores que viram lutadores como Santo Dias serem friamente assassinados ao reivindicarem direitos legítimos de sua classe e terem seus assassinos inocentados por um Estado opressor. Elas não passaram pela truculência policial ao lutarem pela melhoria de suas vidas, por uma existência digna em contradição com um sistema que utiliza-se de palavras como democracia e justiça para cegar uma massa amorfa e sem vontade da qual elas participam. Não, estas pessoas jamais viveram. E se algum dia chegarem a respirar o ar que realmente os circunda, se algum dia abrirem seus olhos e enxergarem o poder que possuem e a injustiça que corrói suas mentes neurônio a neurônio, talvez deixem de exaltar seus algozes e, enfim, enxerguem em histórias simples como a que foi apresentada acima, o fio que apenas inicia uma colcha de retalhos tecida por eles mesmos.

E não é que coube direitinho no texto?

13.1.09

Estereótipos e a arte revolucionária

Os estereótipos seguem a lógica pseudo-imanente pregada pela sociedade administrada. A fixidez buscada por essa sociedade imprime em cada indivíduo sua marca incontestável. Ao dizer que sou o que sou no mundo dos estereótipos torno-me objeto catalogado, imagem já impressa no mundo das formas pré-definidas, do comportamento previsto antes mesmo de sua execução.
O mundo da moda, das artes, do trabalho, das relações familiares, das amizades... Todos estes - e muitos outros - buscam, a partir de cada um de seus componentes, estabelecer o que cada um é e, a partir disso, quais seus respectivos modos de agir e “pensar”. O comportamento virou uma lista determinada de formas estabelecidas pelo status-quo.
Os estereótipos determinam que certo comportamento ou demais características apenas podem pertencer a um certo tipo de segmento neles encontrado. Explico: ao afirmar que faço parte do movimento feminista, logo consumo determinado tipo de produtos, ouço determinado tipo de música e converso sobre certos tipos de assunto, etc. Essas características são gerais em relação aos membros que compõe este segmento. O estereótipo para um membro do movimento feminista corresponde, de forma lógica, a uma série de características pré-estabelecidas, e fatalmente cair-se-á nelas ao ingressá-lo. É assim que prevê a sociedade administrada.
O que a realidade encoberta por esse véu ideológico demonstraria não corresponde, nem de perto, a essa fatalidade triste e opaca. Um indivíduo que faça parte deste grupo não possui, necessariamente, esta ou aquela característica. Não carrega em si a vontade imanente de conversar sobre determinados assuntos, consumir os mesmo produtos ou frequentar os mesmos lugares. O que faz com que aquele grupo se enquadre nessa forma de catalogar o ser humano é a sua crença em valores impostos por uma racionalidade que paira como um deus, guiando e controlando o agir autêntico e livre, o pensar autônomo e conflitante. Na sociedade organizada não existe conflito explícito entre o real e o indivíduo, apenas entre o indivíduo e o irreal.
Dentro dessa lógica destruidora do indivíduo, dentro desta sopa, desta “geléia geral”, como estabelecer a sobrevida daquilo que não se enquadra na vida generalizadora onde cada qual se encontra em seu próprio “quadrado”? A resposta é difícil e ultrapassa as modestas linhas deste despreparado texto. A poesia e a música possuem seus papéis nesta busca onde a linguagem discursiva, que remete a uma lógica mediada pela ideologia dominante, deve ser eliminada para que o véu mistificador seja colocado abaixo, demonstrando a relação verdadeira entre o real e o indivíduo. De forma conflitante, os diversos elementos que compõem cada um dos estereótipos devem aparecer de forma solta, mas a dificuldade de construção de uma arte de linguagem revolucionária surge quando a aparição solta destes elementos devem, de forma esclarecedora, embora conflitante e confusa, remeter ao real, sem parecer obra do fantástico. A realidade explicitada por esta arte deve apresentar o irreconhecível, mas ao mesmo tempo cabível, não caindo em um romantismo totalmente fora de suas linhas.
Sim, existem exemplos dentro da própria música comercial. A arte que expõe a realidade também passa pelas ondas do rádio, pois sua própria dialética não respeita as limitações da sociedade administrada. A proposta de uma quebra com os contratos, com as paradas de sucesso talvez não seja o adequado, pois nega o que ajuda a guiar as mentes, banindo de sua atuação os canais abertos para as mentes atrofiadas. Ao fazer parte do circo midiático, fazendo aparente jogo da linguagem padronizada e alienante, a arte dialética utiliza-se de incrível astúcia. Os exemplos possuem diferentes graus, e podem remeter a grandes mudanças de consciência ou mudanças ainda iniciais. A música Rio 40 Graus (Laufer, Fernanda Abreu e Fausto Fawcett) é um exemplo de quebra de estereótipos, e foi tocada à exaustão nas rádios nos anos 90. Segue trecho de sua letra:
"A novidade cultural
Da garotada
Favelada, suburbana
Classe média marginal
É informática metralha
Sub-uzi equipadinha
Com cartucho musical
De batucada digital...
Gatinho de disket
Marcação pagode, funk
De gatinho marcação
Do samba-lance
Com batuque digital
Na sub-uzi musical
De batucada digital
"
As palavras, sobrepostas, formam um caos onde se encontram elementos do moderno que, de forma estereotipada, pertencem apenas aos bem abastados e esclarecidos moradores da zona sul carioca e ao mesmo tempo elementos que, também de forma estereotipada, remetem ao cotidiano da favela, como necessário à vida de seus moradores. A tecnologia acessível a poucos – ou ainda melhor aproveitada por poucos – junta-se à “geléia geral” de uma maioria. As palavras favela e suburbana são rasgadas pela sequência “classe-média marginal” onde o “batuque digital” das casas noturnas da região mais rica da cidade encontra-se com o jogo de palavras “sub-uzi musical de batucada digital”. A mistura de elementos que, de forma ideológica, pertencem exclusivamente a um segmento social, e não a outro, formam um novo contexto onde a realidade não escapa ao sentido das linhas, mas apresenta-se como desmistificada, apresentando as reais contradições de uma cidade que possui favelas equipadas com a parafernália tecnológica acessível graças aos crediários das lojas de departamento, ao mesmo tempo que a classe-média não mantem-se distante do crime que, através do tráfico, mantém seu mais forte canal de miscibilidade entre a zona sul e o morro. A “novidade cultural” no início do trecho acima apresentado pode muito bem remeter à indústria cultural que não respeita classes na sua busca pelo sempre igual. O funk carioca, o samba, a música eletrônica passa pelos carros importados do Leblon ao mesmo tempo que encontra-se com as armas de guerra dos morros, demonstrando como a música consumível está aí para todos, numa assustadora “democracia” onde as manifestações das diferentes classes, a partir desta indústria, encontram-se numa mistura caótica de comportamentos.
Nesse momento não há mais o estereotipado, não há mais um catálogo onde se identifique o comportamento deste ou daquele segmento da sociedade. Ao pensar desta forma, quebro qualquer preconceito comportamental e identifico, dentro do caos, a negação da ordem aparente. Não, a indústria cultural não nega este fato, mas procura manter, dentro de certos limites, tal afirmação. Neste ponto a música gravada por Fernanda Abreu ainda cai no erro de poder tornar-se o oposto daquilo que poderia, de modo revolucionário, propor, a saber, a exposição do real através da desmistificação da ordem ilusória dos estereótipos culturais. A tentativa é boa, mas parte da cultura estabelecida, sem buscar a raiz de uma cultura esmagada pela indústria que fabrica sua aparência artificial e reificada. Talvez o problema venho do fato da letra cair na apresentação das contradições dentro de um gênero alto, que remete à exaltação da cidade maravilhosa. Ao cair em tal exaltação, a letra remete a uma classificação, ainda mantendo-se presa a valores, a regras de valoração do bom e do belo.
Talvez a valoração deva dar lugar, dentro da arte revolucionária, a uma espécie de narrativa sem emoção, mas ao mesmo tempo possuindo a capacidade de causar reação ao que entra em contato com ela. A reação, fora dos valores já conhecidos, é o novo e até assustador. Em um trecho de Macunaíma, de Mário de Andrade, podemos, de certa forma, encontrar a possibilidade dessa nova emoção. No momento em que se depara, em praça pública, com o argumento de que os males do Brasil são as ideologias estranhas à nossa cultura, e tão somente elas, Macunaíma refuta o orador ao afirmar que as pragas do Brasil são “bicho de café, lagarta rosada, futebol, mosquito piú, maruim, muriçoca, borrachudo, vareja, e toda essa mosquitada! E também muita vaca brava que tem por aí porque a vaca mansa dá leite, a brava dá se quiser. E mais tudo que tem de doença...1, e com isso nos trás de volta ao arcaico perdido, promovendo uma dialética entre o discurso que se coloca a partir da perspectiva do outro (estrangeiro) e o Brasil esquecido por ele mesmo ao adotar os problemas de outra cultura ou a partir da perspectiva do colonizado frente ao colonizador. A dialética aqui não se apresenta a partir do personagem Macunaíma, mas no contexto geral da obra, pois Mário de Andrade, ao colocar dois diferentes tipos de discurso, não toma partido de nenhum, apenas expondo a dialética de um país que, em seu tempo, se via às voltas com o nacionalismo paradoxalmente esquecedor da realidade brasileira ao buscar apenas a crítica a tudo o que “vem de fora”. Enquanto o interlocutor de Macunaíma discute acerca da nocividade dos estrangeirismos, Macunaíma sequer aceita a menção, referindo-se ao que é propriamente de nossa terra. A dialética surge ao confrontarmos aquilo que vem de fora e aquilo que está aqui. É inútil tomar partido de um dos dois personagens, pois a realidade diz respeito ao discurso de ambos. O confronto dos dois discursos não inspira valoração por parte de quem acompanha a obra, mas apenas desperta uma espécie de reação ou mal estar frente à situação.

Macunaíma, "o herói de nossa gente", aqui em adaptação cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade

A não valoração é reforçada pelo fato de que Macunaíma, ao longo da trama, vai demonstrando sua falta de caráter, sua total falta de comprometimento com as pessoas ou situações que surgem a cada acontecimento. Não há como confiar nas palavras de Macunaíma, assim como não há como confiar nas palavras de um personagem que surge na trama sem apresentações, sem que ao menos se tome conta do porquê de seu discurso em praça pública. Imaculadas, as contradições surgem em vitrine, expondo o real de modo injulgado, sem lógica ou pré-concepções.

Sem nos alongarmos na análise de Macunaíma, apenas procuramos encontrar uma forma mais eficiente que a música Rio 40 Graus, fugindo de juízos já interiorizados através do contato com uma cultura reificada. A principal questão acerca de uma arte revolucionária gira em torno da dúvida sobre como usar os elementos responsáveis pela alienação em contraposição aos elementos que desmascaram esse estado de consciência. Ao passar pelo discurso que molda a ideologia, a arte não se torna eficiente para revolucionar a relação entre indivíduo e mundo, sendo necessária a articulação de elementos dentro de um movimento que negue o discurso valorativo, que torna possível, por exemplo, os estereótipos ditados pela indústria cultural.

A arte revolucionária estaria fora de qualquer caraterização, assim como o herói Macunaíma que não possuía caráter. Segundo Ronald de Carvalho, "é justamente essa ausência de caráter que lhe dá um grande caráter sobre-humano onde se refletem no tumulto de aparente indisciplina as energias elementares"2. É fora da ordem limitadora, deficiente e nociva que a arte encontra o real e sua comunicação. É fora dos estereótipos que perdemos o caráter e encontramos nossa verdadeira ligação com o mundo, talvez desta forma tomando nossa verdadeira condição de seres humanos autônomos e conscientes de nossa parte nas diversas culturas que nos constituem.

1. Andrade, Mário – Macunaíma, Ed. Ática, São Paulo, 2 ed.

2. Extraído de http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/macunaima em 13 de janeiro de 2009.

12.1.09

Acordava, tomava seu café apenas após um longo enfrentamento com o fim do sereno, com o fim do sono. Apenas sob pressão fazia planos para seu dia. Encontrava em cada fresta do espaço e do tempo um quebra-cabeças, sendo ele material, virtual, psicológico, ou qualquer coisa que ocupasse uma poeira de sua existência. Nesse quebrar e desquebrar de cabeças, procurava manter a sua própria sob vigilância, vigilância permanente. Enxergava o medo nos outros, apontava-lhes suas fraquezas, mas não com maldade. Começava, aos poucos, a enxergar em si o dom divino de perder-se no todo, de esquecer de si mesmo. Quando o amor lhe apontava sua chama dolorida, dava um passo atrás... Nesse quebrar e desquebrar cotidiano havia perdido a si mesmo. Não poderia se reencontrar. Ou poderia? Poderia voltar a olhar-se no espelho da felicidade? Poderia voltar a ser o egoísta? Ser egoísta significaria voltar à antiga vida, voltar ao flagelo de ser ele mesmo, de mergulhar em seu interior descabido, desmedido, desfibrado, mas não desquebrado, pelo contrário... Naquela noite havia surgido mais um quebra-cabeças, mas este era um daqueles tipos que apontavam para um perigo já conhecido. Pensou em guardar imagens daquilo que o atraía, mas foi com calma, analisou os fatos que convergiam-se em códigos binários. Estava orgulhoso de si mesmo, pois o novo quebra-cabeças vinha de uma antiga vontade de conquistar um estereótipo há muito admirado. Sentiu-se bem e, embora os tempos fossem outros, começava a gostar de si mesmo mais do que de costume, embora ressabiado. O quebra-cabeças ainda estava fragilmente colocado sobre a tela branca e fria, tão fria quanto a cidade que já não mais o atraía, tão fria quanto as manhãs de sereno que o levavam ao trabalho, ao almoço, ao antigo progresso, a uma felicidade exibida que agora o circulava. Não guardou as imagens nem quis mais pensar naquilo, mas não queria apagar a fagulha, embora ainda pudesse. Todo sofrer é uma forma de perder as rédias de algo que o incomoda, e de certo modo, naquele momento, mesmo que com muito cuidado, deixava que aquelas imagens permanecessem borradas, mas não ausentes. Não havia motivos para deixar de lado o que o tentava a aguardar e manter seu ego em alta. A imagem borrada permanecia como a cópia da cópia da cópia. Simulacro ou não, a cópia não lhe trazia informações suficientes sobre até onde iria o real e o imaginário naquele momento. O fato é que gostava daquilo, e talvez se permitisse sofrer um pouco. Havia aprendido onde conseguia moldar-se, onde conseguia rastejar seu corpo dúbio por entre os bancos sujos do ônibus matinal, por entre fórmulas que para ele nada mais diziam do que o risco de morte e vida de um sonho, mas essa era outra história. Aprendera a ser forte! E por que não contrariar sua diluição, trazendo um pouco de si para sua própria existência? Texto, contexto, pretexto... Naquela manhã fez o habitual, logo após trabalhou, almoçou, trabalhou novamente, retornou à sua casa, fez todas as bobagens que o mantinham longe de si, moveu lentamente as peças do quebra-cabeças. Nada de significativo havia mudado naquele dia. De fato as coisas ainda estavam sob controle... A imagem ainda era um fragmento lutando para destruir um mundo! Vez ou outra vivia estes momentos em que procurava negar o divino dentro de si. Todos carregam em si o divino, mas negá-lo também significa viver. Pecar é apenas brincar dentro de si buscando, fora do contexto, a dor que lhe aponta o ser de algo que ainda não sabe que é...