19.1.09

Escravidão ou fome

Daí o operário é “convidado” a mudar de turno na fábrica onde trabalha. Por algum motivo, que é alheio ao nosso conhecimento e, ao mesmo tempo, irrelevante para o texto presente, o operário resolve recusar o tal “convite” dizendo que, mesmo que seja despedido, não deseja ficar no novo horário. Ao receber a notícia o supervisor do operário o demite, afirmando que é tudo ou nada. Pois bem, é nada! Imediatamente após o ocorrido o operário troca sua roupa de trabalho por suas roupas normais e se despede dos colegas de trabalho, passando pelo setores mais próximos a ele.
Os comentários que seguem após tal acontecimento animam um festival de reproduções de falas que caberiam muito bem aos patrões da empresa, mas que, nas bocas dos empregados, parecem com dublagens mal feitas, onde não se associa naturalmente a voz ouvida ao ator filme. Alguns empregados da fábrica e o responsável por estes operários iniciam uma série de comentários que tratam de criticar a atitude do agora ex-funcionário, afirmando que é uma irresponsabilidade recusar um emprego em meio a uma crise como esta, onde já há tantos desempregados. Ouve-se julgamentos do tipo “esse cara não quer trabalhar” e até mesmo “em que mundo ele vive?”.
Sim, para muitos o ex-funcionário da tal empresa está errado, agiu de forma irresponsável, pois deveria baixar a cabeça para uma “simples troca de horário”. Por estarmos em meio a uma crise onde há um aumento considerável do desemprego em nosso país e no restante do mundo o operário deveria aceitar a condição de uma peça substituível e curvar-se a uma imposição que não era de seu agrado.
Mas que diabos há com esse pessoal? Até quando vão justificar o fato de que eles simplesmente não têm a menor coragem de enfrentar o patrão e, a partir de pequenas coisas como essa que foi aqui colocada, põe-se a aceitar todos os mandos e desmandos surgidos da sala da diretoria? Claro, não se trata apenas de coragem, sei bem. A questão é mais profunda, pois há uma carência de consciência, de “pés-no-chão”, de análise da realidade fora de um véu ideológico que envolve todos os críticos do ex-funcionário da tal empresa.
Afinal, como explicar que a ameaça implícita que diz “ou aceita minha condição ou correrá o sério risco de passar necessidades materiais” é utilizada como combustível da “peleguice” de tantos empregados que adotam as falas de seus patrões como suas próprias falas, dando existência ao fenômeno da dublagem mal feita? Sim, a crise tem seu lado bom para os patrões. O medo de perder o emprego e, consequentemente, de ficar sem dinheiro para pagar as contas, para comprar comida ou ainda para satisfazer a tantas outras necessidades e inutilidades da vida no capitalismo tardio são o calcanhar de aquiles no qual se apóiam os patrões para obterem aquilo que bem entendem dos empregados. A crise, ao gerar um grande número de desempregados, aumenta ainda mais os medo dos empregados, mas, ao mesmo tempo, também aumenta o poder dos patrões sobre eles, pois estes agem sobre os funcionários como um adulto que ameaça uma criança de tirar-lhe o brinquedo caso não se comporte bem. A ameaça do adulto sobre a criança legitima, inclusive, discussões como as ocorridas na última semana entre empresários que cogitam a redução dos salários em até 25% para que se amenize o desemprego e, óbvio, a perda de lucro das empresas.
Eis a origem de comentários como esses apresentados acima. Os empregados acabam por segurarem-se como podem, tomando os patrões como a salvação em meio ao caos econômico, pois, ao deterem os meios de produção e sustentarem uma ideologia que exalta o trabalho como meio para superar as crises surgidas na economia, estes deixam de ter o papel de exploradores e passam a ganhar status de salvadores da classe trabalhadora. A consciência individualista é gerada pela falta da consciência de classes onde os trabalhadores se reconheceriam como uma unidade que é a responsável pela produção da riqueza, que paga cada centavo dos seus próprios salários de fome e de cada quilowatt utilizado para fazer as máquinas funcionarem. Ao enxergar de forma fragmentada o trabalhador apenas enxerga a si mesmo, tratando de buscar unicamente seus interesses individuais. Daí a máxima que afirma que é uma irresponsabilidade enfrentar as decisões vindas dos patrões com o risco de perder o emprego e não poder pagar as próprias contas ou comprar a sua comida e da sua família.
O que se ouve ainda na empresa é um funcionário que afirma trabalhar desde sua adolescência e “saber como as coisas funcionam”. Sim, ele sabe bem como as coisas funcionam. Sabe que os empregados são coagidos a aceitarem tudo de bico fechado e sem reclamar, sabe que a realidade é dura quando não se tem um salário que possa pagar a sua sobrevivência. Mas o que o tal funcionário não consegue enxergar é que mudar essa realidade só depende dele e daqueles que, assim como ele, sabem bem “como as coisas funcionam”. O que ele também não consegue enxergar é que o trabalho defendido por ele é o trabalho dos miseráveis que vendem suas horas e seu corpo para que essa maneira das coisas funcionarem continue a existir como uma maldição vinda dos céus, como uma realidade imutável e intocável.
Frente aos acontecimentos apresentados guardo os mais diversos tipos de sentimentos em relação aos funcionários da tal empresa e até em relação a mim. Um misto de vergonha, raiva, revolta e nojo embrulham meu estômago a ponto de acabarem com uma tarde inteira. Ainda há o que se perdoar nestas pessoas. Elas não passaram pelas experiências de trabalhadores que viram lutadores como Santo Dias serem friamente assassinados ao reivindicarem direitos legítimos de sua classe e terem seus assassinos inocentados por um Estado opressor. Elas não passaram pela truculência policial ao lutarem pela melhoria de suas vidas, por uma existência digna em contradição com um sistema que utiliza-se de palavras como democracia e justiça para cegar uma massa amorfa e sem vontade da qual elas participam. Não, estas pessoas jamais viveram. E se algum dia chegarem a respirar o ar que realmente os circunda, se algum dia abrirem seus olhos e enxergarem o poder que possuem e a injustiça que corrói suas mentes neurônio a neurônio, talvez deixem de exaltar seus algozes e, enfim, enxerguem em histórias simples como a que foi apresentada acima, o fio que apenas inicia uma colcha de retalhos tecida por eles mesmos.

E não é que coube direitinho no texto?

13.1.09

Estereótipos e a arte revolucionária

Os estereótipos seguem a lógica pseudo-imanente pregada pela sociedade administrada. A fixidez buscada por essa sociedade imprime em cada indivíduo sua marca incontestável. Ao dizer que sou o que sou no mundo dos estereótipos torno-me objeto catalogado, imagem já impressa no mundo das formas pré-definidas, do comportamento previsto antes mesmo de sua execução.
O mundo da moda, das artes, do trabalho, das relações familiares, das amizades... Todos estes - e muitos outros - buscam, a partir de cada um de seus componentes, estabelecer o que cada um é e, a partir disso, quais seus respectivos modos de agir e “pensar”. O comportamento virou uma lista determinada de formas estabelecidas pelo status-quo.
Os estereótipos determinam que certo comportamento ou demais características apenas podem pertencer a um certo tipo de segmento neles encontrado. Explico: ao afirmar que faço parte do movimento feminista, logo consumo determinado tipo de produtos, ouço determinado tipo de música e converso sobre certos tipos de assunto, etc. Essas características são gerais em relação aos membros que compõe este segmento. O estereótipo para um membro do movimento feminista corresponde, de forma lógica, a uma série de características pré-estabelecidas, e fatalmente cair-se-á nelas ao ingressá-lo. É assim que prevê a sociedade administrada.
O que a realidade encoberta por esse véu ideológico demonstraria não corresponde, nem de perto, a essa fatalidade triste e opaca. Um indivíduo que faça parte deste grupo não possui, necessariamente, esta ou aquela característica. Não carrega em si a vontade imanente de conversar sobre determinados assuntos, consumir os mesmo produtos ou frequentar os mesmos lugares. O que faz com que aquele grupo se enquadre nessa forma de catalogar o ser humano é a sua crença em valores impostos por uma racionalidade que paira como um deus, guiando e controlando o agir autêntico e livre, o pensar autônomo e conflitante. Na sociedade organizada não existe conflito explícito entre o real e o indivíduo, apenas entre o indivíduo e o irreal.
Dentro dessa lógica destruidora do indivíduo, dentro desta sopa, desta “geléia geral”, como estabelecer a sobrevida daquilo que não se enquadra na vida generalizadora onde cada qual se encontra em seu próprio “quadrado”? A resposta é difícil e ultrapassa as modestas linhas deste despreparado texto. A poesia e a música possuem seus papéis nesta busca onde a linguagem discursiva, que remete a uma lógica mediada pela ideologia dominante, deve ser eliminada para que o véu mistificador seja colocado abaixo, demonstrando a relação verdadeira entre o real e o indivíduo. De forma conflitante, os diversos elementos que compõem cada um dos estereótipos devem aparecer de forma solta, mas a dificuldade de construção de uma arte de linguagem revolucionária surge quando a aparição solta destes elementos devem, de forma esclarecedora, embora conflitante e confusa, remeter ao real, sem parecer obra do fantástico. A realidade explicitada por esta arte deve apresentar o irreconhecível, mas ao mesmo tempo cabível, não caindo em um romantismo totalmente fora de suas linhas.
Sim, existem exemplos dentro da própria música comercial. A arte que expõe a realidade também passa pelas ondas do rádio, pois sua própria dialética não respeita as limitações da sociedade administrada. A proposta de uma quebra com os contratos, com as paradas de sucesso talvez não seja o adequado, pois nega o que ajuda a guiar as mentes, banindo de sua atuação os canais abertos para as mentes atrofiadas. Ao fazer parte do circo midiático, fazendo aparente jogo da linguagem padronizada e alienante, a arte dialética utiliza-se de incrível astúcia. Os exemplos possuem diferentes graus, e podem remeter a grandes mudanças de consciência ou mudanças ainda iniciais. A música Rio 40 Graus (Laufer, Fernanda Abreu e Fausto Fawcett) é um exemplo de quebra de estereótipos, e foi tocada à exaustão nas rádios nos anos 90. Segue trecho de sua letra:
"A novidade cultural
Da garotada
Favelada, suburbana
Classe média marginal
É informática metralha
Sub-uzi equipadinha
Com cartucho musical
De batucada digital...
Gatinho de disket
Marcação pagode, funk
De gatinho marcação
Do samba-lance
Com batuque digital
Na sub-uzi musical
De batucada digital
"
As palavras, sobrepostas, formam um caos onde se encontram elementos do moderno que, de forma estereotipada, pertencem apenas aos bem abastados e esclarecidos moradores da zona sul carioca e ao mesmo tempo elementos que, também de forma estereotipada, remetem ao cotidiano da favela, como necessário à vida de seus moradores. A tecnologia acessível a poucos – ou ainda melhor aproveitada por poucos – junta-se à “geléia geral” de uma maioria. As palavras favela e suburbana são rasgadas pela sequência “classe-média marginal” onde o “batuque digital” das casas noturnas da região mais rica da cidade encontra-se com o jogo de palavras “sub-uzi musical de batucada digital”. A mistura de elementos que, de forma ideológica, pertencem exclusivamente a um segmento social, e não a outro, formam um novo contexto onde a realidade não escapa ao sentido das linhas, mas apresenta-se como desmistificada, apresentando as reais contradições de uma cidade que possui favelas equipadas com a parafernália tecnológica acessível graças aos crediários das lojas de departamento, ao mesmo tempo que a classe-média não mantem-se distante do crime que, através do tráfico, mantém seu mais forte canal de miscibilidade entre a zona sul e o morro. A “novidade cultural” no início do trecho acima apresentado pode muito bem remeter à indústria cultural que não respeita classes na sua busca pelo sempre igual. O funk carioca, o samba, a música eletrônica passa pelos carros importados do Leblon ao mesmo tempo que encontra-se com as armas de guerra dos morros, demonstrando como a música consumível está aí para todos, numa assustadora “democracia” onde as manifestações das diferentes classes, a partir desta indústria, encontram-se numa mistura caótica de comportamentos.
Nesse momento não há mais o estereotipado, não há mais um catálogo onde se identifique o comportamento deste ou daquele segmento da sociedade. Ao pensar desta forma, quebro qualquer preconceito comportamental e identifico, dentro do caos, a negação da ordem aparente. Não, a indústria cultural não nega este fato, mas procura manter, dentro de certos limites, tal afirmação. Neste ponto a música gravada por Fernanda Abreu ainda cai no erro de poder tornar-se o oposto daquilo que poderia, de modo revolucionário, propor, a saber, a exposição do real através da desmistificação da ordem ilusória dos estereótipos culturais. A tentativa é boa, mas parte da cultura estabelecida, sem buscar a raiz de uma cultura esmagada pela indústria que fabrica sua aparência artificial e reificada. Talvez o problema venho do fato da letra cair na apresentação das contradições dentro de um gênero alto, que remete à exaltação da cidade maravilhosa. Ao cair em tal exaltação, a letra remete a uma classificação, ainda mantendo-se presa a valores, a regras de valoração do bom e do belo.
Talvez a valoração deva dar lugar, dentro da arte revolucionária, a uma espécie de narrativa sem emoção, mas ao mesmo tempo possuindo a capacidade de causar reação ao que entra em contato com ela. A reação, fora dos valores já conhecidos, é o novo e até assustador. Em um trecho de Macunaíma, de Mário de Andrade, podemos, de certa forma, encontrar a possibilidade dessa nova emoção. No momento em que se depara, em praça pública, com o argumento de que os males do Brasil são as ideologias estranhas à nossa cultura, e tão somente elas, Macunaíma refuta o orador ao afirmar que as pragas do Brasil são “bicho de café, lagarta rosada, futebol, mosquito piú, maruim, muriçoca, borrachudo, vareja, e toda essa mosquitada! E também muita vaca brava que tem por aí porque a vaca mansa dá leite, a brava dá se quiser. E mais tudo que tem de doença...1, e com isso nos trás de volta ao arcaico perdido, promovendo uma dialética entre o discurso que se coloca a partir da perspectiva do outro (estrangeiro) e o Brasil esquecido por ele mesmo ao adotar os problemas de outra cultura ou a partir da perspectiva do colonizado frente ao colonizador. A dialética aqui não se apresenta a partir do personagem Macunaíma, mas no contexto geral da obra, pois Mário de Andrade, ao colocar dois diferentes tipos de discurso, não toma partido de nenhum, apenas expondo a dialética de um país que, em seu tempo, se via às voltas com o nacionalismo paradoxalmente esquecedor da realidade brasileira ao buscar apenas a crítica a tudo o que “vem de fora”. Enquanto o interlocutor de Macunaíma discute acerca da nocividade dos estrangeirismos, Macunaíma sequer aceita a menção, referindo-se ao que é propriamente de nossa terra. A dialética surge ao confrontarmos aquilo que vem de fora e aquilo que está aqui. É inútil tomar partido de um dos dois personagens, pois a realidade diz respeito ao discurso de ambos. O confronto dos dois discursos não inspira valoração por parte de quem acompanha a obra, mas apenas desperta uma espécie de reação ou mal estar frente à situação.

Macunaíma, "o herói de nossa gente", aqui em adaptação cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade

A não valoração é reforçada pelo fato de que Macunaíma, ao longo da trama, vai demonstrando sua falta de caráter, sua total falta de comprometimento com as pessoas ou situações que surgem a cada acontecimento. Não há como confiar nas palavras de Macunaíma, assim como não há como confiar nas palavras de um personagem que surge na trama sem apresentações, sem que ao menos se tome conta do porquê de seu discurso em praça pública. Imaculadas, as contradições surgem em vitrine, expondo o real de modo injulgado, sem lógica ou pré-concepções.

Sem nos alongarmos na análise de Macunaíma, apenas procuramos encontrar uma forma mais eficiente que a música Rio 40 Graus, fugindo de juízos já interiorizados através do contato com uma cultura reificada. A principal questão acerca de uma arte revolucionária gira em torno da dúvida sobre como usar os elementos responsáveis pela alienação em contraposição aos elementos que desmascaram esse estado de consciência. Ao passar pelo discurso que molda a ideologia, a arte não se torna eficiente para revolucionar a relação entre indivíduo e mundo, sendo necessária a articulação de elementos dentro de um movimento que negue o discurso valorativo, que torna possível, por exemplo, os estereótipos ditados pela indústria cultural.

A arte revolucionária estaria fora de qualquer caraterização, assim como o herói Macunaíma que não possuía caráter. Segundo Ronald de Carvalho, "é justamente essa ausência de caráter que lhe dá um grande caráter sobre-humano onde se refletem no tumulto de aparente indisciplina as energias elementares"2. É fora da ordem limitadora, deficiente e nociva que a arte encontra o real e sua comunicação. É fora dos estereótipos que perdemos o caráter e encontramos nossa verdadeira ligação com o mundo, talvez desta forma tomando nossa verdadeira condição de seres humanos autônomos e conscientes de nossa parte nas diversas culturas que nos constituem.

1. Andrade, Mário – Macunaíma, Ed. Ática, São Paulo, 2 ed.

2. Extraído de http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/macunaima em 13 de janeiro de 2009.

12.1.09

Acordava, tomava seu café apenas após um longo enfrentamento com o fim do sereno, com o fim do sono. Apenas sob pressão fazia planos para seu dia. Encontrava em cada fresta do espaço e do tempo um quebra-cabeças, sendo ele material, virtual, psicológico, ou qualquer coisa que ocupasse uma poeira de sua existência. Nesse quebrar e desquebrar de cabeças, procurava manter a sua própria sob vigilância, vigilância permanente. Enxergava o medo nos outros, apontava-lhes suas fraquezas, mas não com maldade. Começava, aos poucos, a enxergar em si o dom divino de perder-se no todo, de esquecer de si mesmo. Quando o amor lhe apontava sua chama dolorida, dava um passo atrás... Nesse quebrar e desquebrar cotidiano havia perdido a si mesmo. Não poderia se reencontrar. Ou poderia? Poderia voltar a olhar-se no espelho da felicidade? Poderia voltar a ser o egoísta? Ser egoísta significaria voltar à antiga vida, voltar ao flagelo de ser ele mesmo, de mergulhar em seu interior descabido, desmedido, desfibrado, mas não desquebrado, pelo contrário... Naquela noite havia surgido mais um quebra-cabeças, mas este era um daqueles tipos que apontavam para um perigo já conhecido. Pensou em guardar imagens daquilo que o atraía, mas foi com calma, analisou os fatos que convergiam-se em códigos binários. Estava orgulhoso de si mesmo, pois o novo quebra-cabeças vinha de uma antiga vontade de conquistar um estereótipo há muito admirado. Sentiu-se bem e, embora os tempos fossem outros, começava a gostar de si mesmo mais do que de costume, embora ressabiado. O quebra-cabeças ainda estava fragilmente colocado sobre a tela branca e fria, tão fria quanto a cidade que já não mais o atraía, tão fria quanto as manhãs de sereno que o levavam ao trabalho, ao almoço, ao antigo progresso, a uma felicidade exibida que agora o circulava. Não guardou as imagens nem quis mais pensar naquilo, mas não queria apagar a fagulha, embora ainda pudesse. Todo sofrer é uma forma de perder as rédias de algo que o incomoda, e de certo modo, naquele momento, mesmo que com muito cuidado, deixava que aquelas imagens permanecessem borradas, mas não ausentes. Não havia motivos para deixar de lado o que o tentava a aguardar e manter seu ego em alta. A imagem borrada permanecia como a cópia da cópia da cópia. Simulacro ou não, a cópia não lhe trazia informações suficientes sobre até onde iria o real e o imaginário naquele momento. O fato é que gostava daquilo, e talvez se permitisse sofrer um pouco. Havia aprendido onde conseguia moldar-se, onde conseguia rastejar seu corpo dúbio por entre os bancos sujos do ônibus matinal, por entre fórmulas que para ele nada mais diziam do que o risco de morte e vida de um sonho, mas essa era outra história. Aprendera a ser forte! E por que não contrariar sua diluição, trazendo um pouco de si para sua própria existência? Texto, contexto, pretexto... Naquela manhã fez o habitual, logo após trabalhou, almoçou, trabalhou novamente, retornou à sua casa, fez todas as bobagens que o mantinham longe de si, moveu lentamente as peças do quebra-cabeças. Nada de significativo havia mudado naquele dia. De fato as coisas ainda estavam sob controle... A imagem ainda era um fragmento lutando para destruir um mundo! Vez ou outra vivia estes momentos em que procurava negar o divino dentro de si. Todos carregam em si o divino, mas negá-lo também significa viver. Pecar é apenas brincar dentro de si buscando, fora do contexto, a dor que lhe aponta o ser de algo que ainda não sabe que é...