13.1.09

Estereótipos e a arte revolucionária

Os estereótipos seguem a lógica pseudo-imanente pregada pela sociedade administrada. A fixidez buscada por essa sociedade imprime em cada indivíduo sua marca incontestável. Ao dizer que sou o que sou no mundo dos estereótipos torno-me objeto catalogado, imagem já impressa no mundo das formas pré-definidas, do comportamento previsto antes mesmo de sua execução.
O mundo da moda, das artes, do trabalho, das relações familiares, das amizades... Todos estes - e muitos outros - buscam, a partir de cada um de seus componentes, estabelecer o que cada um é e, a partir disso, quais seus respectivos modos de agir e “pensar”. O comportamento virou uma lista determinada de formas estabelecidas pelo status-quo.
Os estereótipos determinam que certo comportamento ou demais características apenas podem pertencer a um certo tipo de segmento neles encontrado. Explico: ao afirmar que faço parte do movimento feminista, logo consumo determinado tipo de produtos, ouço determinado tipo de música e converso sobre certos tipos de assunto, etc. Essas características são gerais em relação aos membros que compõe este segmento. O estereótipo para um membro do movimento feminista corresponde, de forma lógica, a uma série de características pré-estabelecidas, e fatalmente cair-se-á nelas ao ingressá-lo. É assim que prevê a sociedade administrada.
O que a realidade encoberta por esse véu ideológico demonstraria não corresponde, nem de perto, a essa fatalidade triste e opaca. Um indivíduo que faça parte deste grupo não possui, necessariamente, esta ou aquela característica. Não carrega em si a vontade imanente de conversar sobre determinados assuntos, consumir os mesmo produtos ou frequentar os mesmos lugares. O que faz com que aquele grupo se enquadre nessa forma de catalogar o ser humano é a sua crença em valores impostos por uma racionalidade que paira como um deus, guiando e controlando o agir autêntico e livre, o pensar autônomo e conflitante. Na sociedade organizada não existe conflito explícito entre o real e o indivíduo, apenas entre o indivíduo e o irreal.
Dentro dessa lógica destruidora do indivíduo, dentro desta sopa, desta “geléia geral”, como estabelecer a sobrevida daquilo que não se enquadra na vida generalizadora onde cada qual se encontra em seu próprio “quadrado”? A resposta é difícil e ultrapassa as modestas linhas deste despreparado texto. A poesia e a música possuem seus papéis nesta busca onde a linguagem discursiva, que remete a uma lógica mediada pela ideologia dominante, deve ser eliminada para que o véu mistificador seja colocado abaixo, demonstrando a relação verdadeira entre o real e o indivíduo. De forma conflitante, os diversos elementos que compõem cada um dos estereótipos devem aparecer de forma solta, mas a dificuldade de construção de uma arte de linguagem revolucionária surge quando a aparição solta destes elementos devem, de forma esclarecedora, embora conflitante e confusa, remeter ao real, sem parecer obra do fantástico. A realidade explicitada por esta arte deve apresentar o irreconhecível, mas ao mesmo tempo cabível, não caindo em um romantismo totalmente fora de suas linhas.
Sim, existem exemplos dentro da própria música comercial. A arte que expõe a realidade também passa pelas ondas do rádio, pois sua própria dialética não respeita as limitações da sociedade administrada. A proposta de uma quebra com os contratos, com as paradas de sucesso talvez não seja o adequado, pois nega o que ajuda a guiar as mentes, banindo de sua atuação os canais abertos para as mentes atrofiadas. Ao fazer parte do circo midiático, fazendo aparente jogo da linguagem padronizada e alienante, a arte dialética utiliza-se de incrível astúcia. Os exemplos possuem diferentes graus, e podem remeter a grandes mudanças de consciência ou mudanças ainda iniciais. A música Rio 40 Graus (Laufer, Fernanda Abreu e Fausto Fawcett) é um exemplo de quebra de estereótipos, e foi tocada à exaustão nas rádios nos anos 90. Segue trecho de sua letra:
"A novidade cultural
Da garotada
Favelada, suburbana
Classe média marginal
É informática metralha
Sub-uzi equipadinha
Com cartucho musical
De batucada digital...
Gatinho de disket
Marcação pagode, funk
De gatinho marcação
Do samba-lance
Com batuque digital
Na sub-uzi musical
De batucada digital
"
As palavras, sobrepostas, formam um caos onde se encontram elementos do moderno que, de forma estereotipada, pertencem apenas aos bem abastados e esclarecidos moradores da zona sul carioca e ao mesmo tempo elementos que, também de forma estereotipada, remetem ao cotidiano da favela, como necessário à vida de seus moradores. A tecnologia acessível a poucos – ou ainda melhor aproveitada por poucos – junta-se à “geléia geral” de uma maioria. As palavras favela e suburbana são rasgadas pela sequência “classe-média marginal” onde o “batuque digital” das casas noturnas da região mais rica da cidade encontra-se com o jogo de palavras “sub-uzi musical de batucada digital”. A mistura de elementos que, de forma ideológica, pertencem exclusivamente a um segmento social, e não a outro, formam um novo contexto onde a realidade não escapa ao sentido das linhas, mas apresenta-se como desmistificada, apresentando as reais contradições de uma cidade que possui favelas equipadas com a parafernália tecnológica acessível graças aos crediários das lojas de departamento, ao mesmo tempo que a classe-média não mantem-se distante do crime que, através do tráfico, mantém seu mais forte canal de miscibilidade entre a zona sul e o morro. A “novidade cultural” no início do trecho acima apresentado pode muito bem remeter à indústria cultural que não respeita classes na sua busca pelo sempre igual. O funk carioca, o samba, a música eletrônica passa pelos carros importados do Leblon ao mesmo tempo que encontra-se com as armas de guerra dos morros, demonstrando como a música consumível está aí para todos, numa assustadora “democracia” onde as manifestações das diferentes classes, a partir desta indústria, encontram-se numa mistura caótica de comportamentos.
Nesse momento não há mais o estereotipado, não há mais um catálogo onde se identifique o comportamento deste ou daquele segmento da sociedade. Ao pensar desta forma, quebro qualquer preconceito comportamental e identifico, dentro do caos, a negação da ordem aparente. Não, a indústria cultural não nega este fato, mas procura manter, dentro de certos limites, tal afirmação. Neste ponto a música gravada por Fernanda Abreu ainda cai no erro de poder tornar-se o oposto daquilo que poderia, de modo revolucionário, propor, a saber, a exposição do real através da desmistificação da ordem ilusória dos estereótipos culturais. A tentativa é boa, mas parte da cultura estabelecida, sem buscar a raiz de uma cultura esmagada pela indústria que fabrica sua aparência artificial e reificada. Talvez o problema venho do fato da letra cair na apresentação das contradições dentro de um gênero alto, que remete à exaltação da cidade maravilhosa. Ao cair em tal exaltação, a letra remete a uma classificação, ainda mantendo-se presa a valores, a regras de valoração do bom e do belo.
Talvez a valoração deva dar lugar, dentro da arte revolucionária, a uma espécie de narrativa sem emoção, mas ao mesmo tempo possuindo a capacidade de causar reação ao que entra em contato com ela. A reação, fora dos valores já conhecidos, é o novo e até assustador. Em um trecho de Macunaíma, de Mário de Andrade, podemos, de certa forma, encontrar a possibilidade dessa nova emoção. No momento em que se depara, em praça pública, com o argumento de que os males do Brasil são as ideologias estranhas à nossa cultura, e tão somente elas, Macunaíma refuta o orador ao afirmar que as pragas do Brasil são “bicho de café, lagarta rosada, futebol, mosquito piú, maruim, muriçoca, borrachudo, vareja, e toda essa mosquitada! E também muita vaca brava que tem por aí porque a vaca mansa dá leite, a brava dá se quiser. E mais tudo que tem de doença...1, e com isso nos trás de volta ao arcaico perdido, promovendo uma dialética entre o discurso que se coloca a partir da perspectiva do outro (estrangeiro) e o Brasil esquecido por ele mesmo ao adotar os problemas de outra cultura ou a partir da perspectiva do colonizado frente ao colonizador. A dialética aqui não se apresenta a partir do personagem Macunaíma, mas no contexto geral da obra, pois Mário de Andrade, ao colocar dois diferentes tipos de discurso, não toma partido de nenhum, apenas expondo a dialética de um país que, em seu tempo, se via às voltas com o nacionalismo paradoxalmente esquecedor da realidade brasileira ao buscar apenas a crítica a tudo o que “vem de fora”. Enquanto o interlocutor de Macunaíma discute acerca da nocividade dos estrangeirismos, Macunaíma sequer aceita a menção, referindo-se ao que é propriamente de nossa terra. A dialética surge ao confrontarmos aquilo que vem de fora e aquilo que está aqui. É inútil tomar partido de um dos dois personagens, pois a realidade diz respeito ao discurso de ambos. O confronto dos dois discursos não inspira valoração por parte de quem acompanha a obra, mas apenas desperta uma espécie de reação ou mal estar frente à situação.

Macunaíma, "o herói de nossa gente", aqui em adaptação cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade

A não valoração é reforçada pelo fato de que Macunaíma, ao longo da trama, vai demonstrando sua falta de caráter, sua total falta de comprometimento com as pessoas ou situações que surgem a cada acontecimento. Não há como confiar nas palavras de Macunaíma, assim como não há como confiar nas palavras de um personagem que surge na trama sem apresentações, sem que ao menos se tome conta do porquê de seu discurso em praça pública. Imaculadas, as contradições surgem em vitrine, expondo o real de modo injulgado, sem lógica ou pré-concepções.

Sem nos alongarmos na análise de Macunaíma, apenas procuramos encontrar uma forma mais eficiente que a música Rio 40 Graus, fugindo de juízos já interiorizados através do contato com uma cultura reificada. A principal questão acerca de uma arte revolucionária gira em torno da dúvida sobre como usar os elementos responsáveis pela alienação em contraposição aos elementos que desmascaram esse estado de consciência. Ao passar pelo discurso que molda a ideologia, a arte não se torna eficiente para revolucionar a relação entre indivíduo e mundo, sendo necessária a articulação de elementos dentro de um movimento que negue o discurso valorativo, que torna possível, por exemplo, os estereótipos ditados pela indústria cultural.

A arte revolucionária estaria fora de qualquer caraterização, assim como o herói Macunaíma que não possuía caráter. Segundo Ronald de Carvalho, "é justamente essa ausência de caráter que lhe dá um grande caráter sobre-humano onde se refletem no tumulto de aparente indisciplina as energias elementares"2. É fora da ordem limitadora, deficiente e nociva que a arte encontra o real e sua comunicação. É fora dos estereótipos que perdemos o caráter e encontramos nossa verdadeira ligação com o mundo, talvez desta forma tomando nossa verdadeira condição de seres humanos autônomos e conscientes de nossa parte nas diversas culturas que nos constituem.

1. Andrade, Mário – Macunaíma, Ed. Ática, São Paulo, 2 ed.

2. Extraído de http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/macunaima em 13 de janeiro de 2009.

Um comentário:

rafael andolini disse...

o problema não é que o movimento destrói o individuo.
Não há outra maneira de se pensar o indivíduo, onde ele não seja por definição dividido. Não existe dentro do homem uma unidade, pelo contrário, existe antes um conflito. Forças geradoras que tendem e rasgam o homem de dentro para fora.
Quando estas forças entram em ação, o homem escolhe qual de suas tensões irá prevalecer. Uma vez prevalecida, o próximo passo se escreve sozinho. Homens e mulheres que priorizam tal e tal força formam pares, e futuramente grupos. Este grupo visando permanecer em uma posição de destaque, que traga benefícios a si mesmo, e consequentemente, talvez, para seu grupo, utiliza os meios necessários para isso.
Disso nasce a idiotice que diz que o homem se enquadra em categorias que nada dizem sobre ele. Nada dizem, não porque ele é um indiviuo único, mas antes porque ele é dividido em forças inauditas que lhe escapam a própria compreensão. Um contato com os mais remotos rincões de sua consciência não tocada.
Quanto a se encaixar, o homem deve estar preparado para dias de solidão e agonia, uma vez que pretenda desmistificar suas guerras particulares de si consigo mesmo. E se conseguir fazer isto cantando para si canções que o faça suportar sua última solidão, tanto quanto melhor...