28.11.05

Conheça-te a ti mesmo...

I


Sócrates — agora, qual será a arte pela qual poderíamos nos preocupar conosco?
Alcibíades — Isto eu ignoro.
Sócrates — Em todo o caso, estamos de acordo num ponto: não é pela arte que nos permita melhorar algo do que nos pertence, mas pela que faculte uma melhoria de nós mesmos.
Alcibíades — Tens razão.
Sócrates — Por outro lado, acaso poderíamos reconhecer a arte que aperfeiçoa os calçados, se não soubéssemos em que consiste um calçado?
Alcibíades — Impossível.
Sócrates — Ou que arte melhora os anéis, se não soubéssemos o que é um anel?
Alcibíades — Não, isto não é possível.
Sócrates — Entretanto, será fácil conhecer-se a si mesmo? E teria sido um homem ordinário aquele que colocou este preceito no templo de Pytho? Ou trata-se, pelo contrário, de uma tarefa ingrata que não está ao alcance de todos?
Alcibíades — Quanto a mim, Sócrates, julguei muitas vezes que estivesse ao alcance de todos, mas algumas vezes também que ela é muito difícil.
Sócrates — Que seja fácil ou não, Alcibíades, estamos sempre em presença do fato seguinte: somente conhecendo-nos é que podemos conhecer a maneira de nos preocupar conosco; sem isto, não o podemos.
Alcibíades — É muito justo.

Platão, Alcibíades, 128d-129

II

Sócrates — Dize-me Eutidemo, estivestes alguma vez em Delfos?
Eutiemo — Duas vezes, por Zeus!
Sócrates — Viste, então, a inscrição gravada no templo: conhece-te a ti mesmo?
Eutiemo — Sim, certamente.
Sócrates — Esta inscrição não te despertou nenhum interesse, ou, ao contrário, notaste-a e procuraste examinar quem tu és?
Eutiemo — Não, por Zeus! Dado que julgava sabê-lo perfeitamente: pois teria sido difícil para eu aprender outra coisa caso me ignorasse a mim mesmo.
Sócrates — Então pensas que para conhecer quem somos, basta sabermos o nosso nome, ou que, à maneira dos compradores de cavalo que não crêem conhecer o animal que querem comprar antes de haver examinado se é obediente, teimoso...
Eutiemo — Parece-me, de acordo com o que acabas de dizer-me, que não conhecer o próprio valor equivale a se ignorar a si mesmo.
Sócrates — Os que se conhecem sabem o que lhes é útil e distinguem o que podem fazer daquilo que não podem: ora, fazendo aquilo de que são capazes, adquirem o necessário e vivem felizes; abstendo-se daquilo que está acima de suas forças não cometem faltas e evitam o mau êxito; enfim, como são mais capazes de julgar os outros homens, podem, graças ao partido que daí tiram, conquistar grandes bens e livrar-se de grandes males... Contrariamente, caem nas desgraças.

Xenofonte, Memoráveis, IV, II, 26.

Fonte: SAUVAGE, M. Sócrates e a Consciência do Homem. São Paulo, Agir, 1959.
***
O homem que não conhece sua própria essência, pouco tem a fazer pela sua vida. Sócrates foi o sábio que trouxe já na antiguidade esse pensamento. Você é o seu mundo, o seu universo e a forma como ele se manifesta perante você é reflexo das suas ações e pensamentos. Daí a necessidade de conhecer-se... Isso é mais importante do que a maioria das pessoas imaginam. Nossos pensamentos e atitudes estão diretamente ligadas à forma como nos conhecemos e controlamos o nosso eu. O problema é que uma pequena, mas muito pequena porção da nossa essência está agindo de fato. Uma porção muito grande das ações e pensamentos que nos regem estão ligadas à paixões e vícios que nos são dados desde que nascemos. Livrar-se do ego é um grande desafio da vida. O ego é o conjunto dos diversos eus que existem dentro de nós e cada um deles está numa luta constante pelo domínio do nosso corpo, como pessoas brigando para dirigirem o mesmo carro. Anular essa luta de eus que são apenas movidos pelas paixões e vícios de um mundo superficial é como libertar-se das amarras das infelicidades e inquietações dessa vida.

Precisamos disso para sermos felizes de fato. Sei que não é fácil, mas eu estou disposto a aprender...

2.11.05

Bem Vindo ao Deserto do Real

Como te fazer acordar e perceber que nada disso é real? Como te explicar que mesmo para mim que acabei de acordar, muitas coisas ainda parecem familiares? Que muitos valores eu não conseguirei mais perder, pois meu cérebro já foi danificado por toda esse ideologia? De certa forma sinto-me como Neo, quando pensa no seu passado na Matrix e percebe que nada daquilo existiu. Mas será que nada existiu? No meu caso sim. As relações humanas permanecem imutáveis. Talvez os motivos que as movam sejam outros, mas elas sempre existirão. Meus amigos, a mulher que eu amo... Talvez meu amor por ela derive de alguma ideologia pré-fabricada, mas o meu bem-querer está muito além disso. Talvez meus amigos sejam o espelho da minha consciência, mas tudo o que sinto por eles está dentro de mim e sem precisar projetar-se para o mundo.O homem é forte! Será que você não percebe que a sua própria "vida" é contraditória? Você quer possuir bens, mas os nega esquecendo que quem os fez foi você mesmo! Você abaixa a cabeça para uma caixa que te mostra um mundo se sonhos que te é negado, mas ainda assim sustentado pelo seu próprio suor. Suor maldito! E um livro idiota diz que você está condenado a isso por causa de uma fruta... Uma fruta que você mesmo teme em comer, mas come todos os dias. O seu pecado te martiriza e te joga na labuta. Te escraviza e você pergunta toda noite: "Estou perdoado, Senhor?" E Deus, se existir, provavelmente estará ouvindo e torcendo para que você se liberte disso tudo. Até mesmo desse clone que fizeram Dele para te transformar num animal adestrado...
Insisto mais uma vez na força do homem! No pensamento, que é o nosso recurso mais rico. Nossa única riqueza! Que seria do mundo se mergulhásse-mos numa era onde o pensamento e a liberdade finalmente se encontrassem?
O homem não se enxerga mais como homem, mas sim como mercadoria. E trata-se como tal. Como um alcoólatra que sabe que não deve beber, mas ainda o faz. Um vício cultural, uma doença. Você sabe que deve enxergar a humanidade como uma massa de semelhantes, mas mesmo assim está preso aos seus valores individualistas e nesse ponto a ideologia burguesa é mais brilhante ainda! Nesse momento ela não precisa nem ao menos impor-se. Você corre a ela como o alcoólatra corre para a garrafa de bebida. Você comeu a maçã novamente e por isso deve suar! O seu suor te sustentará, mas não te livrará da culpa.
O mundo me parece muito pior depois que tomei a pílula vermelha... O meu trabalho não me alegra seja ele qual for, a TV se mostra como uma infeliz vitrine do que nunca vai existir, a maioria das pessoas a minha volta tornaram-se zumbis sem consciência, sem alegria... O que me faz sobreviver ao deserto do real são justamente as relações humanas que mesmo imersas nesse mar de burrice, ainda trazem em sua essência o embrião do mundo que eu ainda sonho que vai existir. Mesmo que não possa vê-lo devido à mortalidade de meu corpo... mesmo que não possa tocá-lo. Mas por acaso eu posso tocar essa Matrix onde vivo? Não mais, meus amigos. Não mais...

Pensamentos soltos

A Matrix nossa de cada dia

"Come o teu pão.
Bebe o teu café.
Dê um beijo em sua esposa.
Sinta ódio de sua esposa.
Sinta ódio de seus filhos.
Leia no jornal as matérias econômicas.
Pense no seu emprego.
Dirije o seu carro.
Pense no seu chefe.
Você também odeia seu chefe.
Trabalhe e se preocupe.
Vire e revire seus papéis:
Quando você vai achar sua vida?
Ame os clientes simpáticos.
Seja gentil com os clientes antipáticos.
Saia para o almoço.
Coma no fast-food mais próximo.
Não olhe para as pessoas ao lado.
Não deixe que elas reparem
No seu cabelo um pouco desalinhado.
Volte para o trabalho.
Olhe para os seus colegas.
Sinta o mesmo desespero inútil.
Escute a fofoca sobre a mulher do chefe.
Lembre-se da promoção que te prometeram.
Inicie novamente o expediente.
Que vontade de apagar com errorex
A hipocrisia dos funcionários e clientes da empresa.
Mas você precisa dar de comer ao governo
E à família que você tanto ama (odeia).
Depois volte para a casa.
Mas antes passe no inglês para pegar seu filho.
Imagine-se tirando a calcinha da sua secretária.
Agora lembre-se da gordura da sua mulher.
Sinta ódio mais uma vez da sua mulher.
Em casa ligue a televisão.
Coloque no programa do Ratinho:
"Homem mata os pais por amor a uma boneca inflável".
Mude de canal.
"Dólar passa da casa dos três reais".

Mas continue vendo a televisão.
Principalmente as propagandas.
Ria da tartaruga dos comerciais de cerveja.
Sonhe com o carro viril e potente.
Participe do concurso da pasta de dentes.
O Jantar está na mesa.
Janta. Coma. Não mastiga. Engula.
(Como você vem fazendo durante todo esse tempo)
Pergunta a teu filho como foi o dia na escola.
Aborreça-se por ele não ter feito o dever de casa.
Agora durma. Sonhe com os anjos.
Afinal, você é um cidadão exemplar, você merece.
Só não esqueça de pagar amanhã, água, luz e telefone.
Fique de joelhos e faça tua oração mecânica.
Com certeza, o bom Deus abençoará a sua vida medíocre."


trecho da obra
"Espelhos Efêmeros", de Thiago Maia

***

Fragmentos de uma ideologia

Da mídia

OS CONTROLADORES - "Vamos ter artistas para entretê-los e esses artistas passarão a imagem do que se deve ser. Eles terão boa vida e essa vida abastada servirá de exemplo para que procurem sempre chegar a ela e que essa busca seja infinita. Ninguém quer trabalhar, mas sabem que são obrigados e que a única forma de saírem dessa roda é possuindo dinheiro. Que o entretenimento seja a libertação! Um ou dois dias, uma noite, algumas horas de alegria! Álcool, drogas, sexo... Bens que podemos vender a todos e que também consumimos. Quanto melhor, mais caro. Você quer? Trabalhe e se esforce. Não se esforça? Vagabundo! Uma vergonha para seus pais que lutaram a vida inteira para você ter alguma coisa.
Os jovens, biologicamente inconstantes e inconformados, como vamos insistir em frisar, também terão seus exemplos. Artistas que pregarão a revolta ao sistema (seja lá o que signifique isso) e contra a falta de liberdade. O seu visual será igual ao dos jovens, totalmente incompatível com o que seus pais vestem e quando crescerem e precisarem trabalhar, darão-se conta de que aquilo foi apenas uma fase, coisa de jovem rebelde sem causa. Agora crescido e responsável, o ex-adolescente agora está pronto para nos servir e ser mais um deles.
Modelos, músicos e atores vão refletir o mito. Suas vidas serão vasculhadas. A TV será um mundo dos sonhos onde é quase impossível de se chegar. Ela estará nas salas e quartos, nos restaurantes e estabelecimentos comerciais em geral. Sempre em destaque como se estivesse num altar. Ela formará opinião e passará nossas idéias para as massas. Seus ídolos serão como faróis em um mar revolto e seus noticiários a expressão da liberdade de informação. Um marco na cultura!"