21.9.08

Contra a Ciência

A ciência é o conhecimento por excelência. Aos filósofos pergunto: por que nenhum deles consegue transformar a sociedade? Por que nenhum consegue polemizar as discussões midiáticas tanto quanto um estudioso das células tronco? Por que as teorias que tratam criticamente da sociedade contemporânea não surtem efeito entre as massas?
Podemos considerar que há uma questão de manipulação por parte dos meios de comunicação, uma vez que representam uma classe que não tem interesse algum em modificar a realidade na qual se encontram no “topo do mundo”, isso é bem verdade. Mas se ficássemos por aí, trataríamos superficialmente a questão.
Voltemos para a frase que abriu este texto: a ciência é o conhecimento por excelência. Longe de exprimir algum tipo de plano malévolo, que pretende continuar o domínio do mundo, a ideologia em questão afirma uma visão de mundo que é imposta. Dentro dessa visão a classe dominante não admite contrariedades, não admite o não-igual. A forma como se observa o mundo, como se constrói seu funcionamento depende de muitos fatores. Existem muitas formas de entrar em contato com a realidade, de construir nossas experiências, seja a partir da razão, da emoção, das mais diversas manifestações artísticas, ou de qualquer outro feixe perceptivo de nosso ser.
Quem teoriza sobre essa série de possibilidades toma uma decisão. Tal decisão recai sobre a possibilidade de escolher uma ou muitas entre essas possibilidades de conhecimento. A classe dominante utilizou, em sua história, um combustível perigoso, a saber, a crença de que a razão, substrato iluminador de uma nova forma de conhecer o mundo, seria sua única possibilidade. Nasceria, nesse momento, a ciência moderna como um embrião do que hoje podemos entender por um modo de conhecer o mundo que aniquilou todas as outras formas de conhecimento, deixou sem referência diversos campos de ação humano, tomando unicamente para si a tarefa de nos dar o mundo real.
Seja nas artes, na filosofia, na política ou na religião, os critérios para se avaliar esse ou aquele campo de ação ou conhecimento humanos, segundo a visão dominante, são desconsiderados em relação à ciência. Aliada às visões econômicas que também nasciam com essa razão iluminadora, a ciência passou a determinar a vida e a morte dos homens. A ciência é a expressão máxima do império da razão! É graças a ela que o isolamento do mundo natural tomou proporções fantásticas. A tecnologia, sua expressão mais mutável, cria um mundo do qual não conseguimos mais sair sem dor. A economia garante o bom funcionamento de suas pretensões epistemológicas, mantendo longe todos aqueles que não dominam sua linguagem sagrada baseada em equações complicadíssimas, autorizando discursos divinizados pela sociedade administrada. A ciência é o enviado mais importante da razão totalitária. É seu messias!
Acho que podemos ensaiar, a partir daqui, as respostas às perguntas iniciais desse texto. O filósofo não consegue mais ser ouvido. Os círculos acadêmicos enclausuram aqueles que tratam criticamente as afirmações jogadas acima de forma tão descuidadas. Os muros das universidades mais importantes do mundo possuem os pesquisadores mais brilhantes, as mentes mais ágeis no filosofar, cumprindo sua grande proposta: isolar a filosofia, mantendo suas abordagens longe da maioria das pessoas. Ao mesmo tempo ela produz ciência, jogando suas proposições para todo o mundo, utilizando suas manipulações em parceria com a economia, movendo a indústria.
Mas esse texto não quer criticar a academia. Esse texto quer criticar a ciência que faz com que as instituições trabalhem em seu favor em nome da divindade racional. É como se cristo não tivesse sido crucificado, é como se toda a humanidade tivesse aceitado o Pai. Não existe forma mais segura de se viver, não há forma mais certa de se dizer o mundo, não existe nada mais sagrado e útil para o homem do que o conhecimento científico. Trabalhamos em torno do que a ciência conhece, utilizando a economia, o Estado, a educação e a mídia para favorecê-la. A razão que quer ser universal teria que manifestar-se de algum modo, começando pela sua expessão mais sublime, mais próxima do inefável, do a priori existencial.
O homem quer conhecer, pois essa é a forma mais segura de ficar longe do mundo natural e seu perigos. O que move a sociedade não é primeiramente a economia, mas sim a ciência, manifestação mais pura da razão instrumental. A razão totalitária não poderia mover o mundo sem essa materialização, pois ela não pode tocar o mundo. A razão e o mundo não conseguem se tocar!
A filosofia é vista dentro da ambição comteana de fim da filosofia. Ela não acabou, mas para a ciência está sepultada. Suas próprias bases metafísicas são tomadas por deduções lógicas, mascaradas pelo selo científico organizado pela matemática e pela crença nos sentidos. A ciência precisa ruir, ela é a inimiga do homem enquanto estiver ocupando o status de messias da razão que quer ser tudo. A ciência não seria ruim caso estivesse fora de suas vestes sagradas, de seus discursos intocáveis, seus anúncios salvadores. A ciência serve a uma razão universal, tomando para si a missão material de transformar o mundo, de levar o homem à perfeição, fazendo esse mesmo homem sair da terra e tocar a razão. O homem, com isso, não chega nem ao mundo, nem às idéias.
O grande inimigo da filosofia não é objetivamente a razão totalitária, mas é sua pior manifestação. A filosofia quer mudar o mundo, e para isso precisa mostrar à razão totalitária sua incapacidade. O objeto de ataque da filosofia deve ser a ciência. Quebrando a manifestação sagrada da razão instrumental poderemos estabelecer à razão um novo status. A razão não desaparecerá: o que desaparecerá será sua manifestação mais errônea. A razão não pode tocar o mundo, o mundo está a salvo da “razão pura”, a razão não é capaz de fazer o que pretende, a não ser através da ciência. O homem deve cuidar para que a razão não se manifeste como razão instrumental, mas que se manifeste como deve ser manifestada, abrindo caminho para a irracionalidade aprisionada.
O grande aliado da filosofia é a arte, mas a arte não tem poder conceitual. O conceito não pode abarcar o todo, mas pode abarcar a ciência. O conceito, uma vez viciado pela visão científica, tem poder crítico, mas precisa da arte para compreender o que é viver com a consciência existencial de uma razão limitada.
Tomemos como ponto de partida o princípio de que o grande inimigo da filosofia é a ciência tal como se encontra em nosso momento. Peguem suas armas, mirem no inimigo: o grande inimigo da filosofia é a ciência!

18.9.08

"A Arte da Felicidade: um Manual para a Vida"

A concepção antiga de arte remetia, essencialmente, ao seguimento de uma série de técnicas para se chegar a uma estética ideal, que remetia ao que Platão denominava de boa mímesis, ou seja, aquela que se aproximava mais das formas do plano das idéias. A noção de arte, nesse tempo, não fazia referência alguma ao autor, mas sim ao seguimento de um decoro em torno da obra. O que fugia desse decoro não era considerado arte, ou seja, ao estabelecer uma regra para se fazer arte, a noção de plágio não existia. Não havia a preocupação com a originalidade, mas sim com a regra baseada num ideal estético.
Acredito que as palavras não possuem essência. Suas significações remetem a um conjunto de práticas sociais às quais elas, historicamente, remetem. Desse modo, o conceito de arte antigo foi se modificando ao longo da história, tomando as mais diferentes significações.
Creio que um problema das mudanças em torno de uma palavra, dentro de determinadas culturas, vem do fato de que certas palavras acabam ganhando generalizações que antes não lhes eram características. Com isso a palavra arte, em nossa sociedade, acabou atingindo um status generalizante que diz respeito ao título desse texto. Ora, se a noção de arte na antiguidade remetia ao uso de uma técnica, a uma prática ligada ao uso de uma espécie de metodologia – utilizando um termo anacrônico – para se chegar à boa mímesis platônica, o que observamos nos dias correntes é que a palavra arte, longe de remeter, necessariamente a uma técnica, perdeu suas limitações de definição.
O termo arte ganhou os mais diversos significados, e daí vem o problema em relação a seu uso: se esse uso na vida também tivesse sido ampliado seria natural que seu significado também o fosse, mas, ao contrário, o que se observa é que a noção de arte, dentro da sua realização no capitalismo tardio, sofreu um esvaziamento. A noção de arte, atualmente, dentro do senso comum, ainda deve muito ao romantismo que trata da sua definição, grosso modo, como uma realização subjetiva, uma manifestação do sentimento, remetendo à expressão, criação e interioridade.
Ora, a arte, nos dias correntes, ainda pode ser praticada por alguns desse modo, mas dentro de uma sociedade tecnicista, onde a arte passa a ser influenciada pelo avanço da tecnologia, vemos a velha noção de técnica voltar a rondar o termo. As técnicas fotográficas, cinematográficas, o desenho industrial, remetem a uma realidade onde a arte se torna material de reprodução, assim como os objetos consumidos diariamente pelas pessoas.
O que Adorno chamaria de “desestetização da arte” remete à perda da noção de beleza natural, fruto do distanciamento entre homem e natureza, onde essa beleza natural representava um objeto que não foi criado pelo homem, ou seja, não-identificado por ele. Dentro de um mundo onde o afastamento e a busca do domínio total por parte de uma razão instrumental, reprodutora de seus produtos necessariamente “criados” e sempre iguais, o não-identificado, o não-igual, ou ainda, o Outro, é algo inadmissível. A arte não poderia mais possuir status mimético – nem no sentido platônico nem no sentido adorniano.
A idealização da velha arte romântica não condiz com a realidade, e o uso do termo, com isso, perdeu seus limites. Em outros termos, o uso indiscriminado da palavra perdeu seus critérios, e nesse ponto chegamos ao objeto de crítica do texto.
O livro intitulado “A Arte da Felicidade: um Manual para a Vida”, escrito por Howard C. Cutler & Dalai Lama, tem como intenção orientar o seu leitor na direção de uma vida feliz, através de uma série de conselhos de Dalai Lama que buscam estimular a suposta capacidade que cada um possui para encontrar essa felicidade.
Sem intenção de remeter a culturas que, de longe, eu conheça - culturas orientais - quero remeter ao que o termo arte, dentro do título do livro, e do presente texto, significa dentro de uma sociedade ocidental, imersa na razão instrumental do sempre-igual. Talvez dentro das culturas orientais o tema ideal proposto pelo livro possa ser possível, mas como as palavras são vazias e necessitam de vida para preenchê-las, ela parece em nosso contexto, no mínimo, como uma sugestão ao totalitarismo racional no qual vivemos.
Ora, dentro da idéia exposta acima – de que a arte nos dias de hoje, por motivos tecnológicos, voltou a remeter ao uso de uma técnica – podemos entender que a palavra, dentro do livro em questão possui duas finalidades:
a) Ideológica – Uma vez que o termo arte, dentro de uma não-correspondência com o real, perdeu seus limites de definição, é possível utilizá-la numa relação com a palavra felicidade, apontando para um modo de viver, ou seja, um tipo de vida que, ao ser vivida, aponta para uma arte desenvolvida pelo que segue os conselhos do mestre tibetano. Viver bem, o que pode remeter a muitas coisas, mas, esse que escreve, sinceramente, não consegue atribuir critério estético algum a essa arte. Desse modo a palavra possui um caráter ideológico que esconde seu uso real dentro das relações sociais postas;
b) Totalitária – Essa arte, dentro do termo real, prático que a palavra possui nos dias de hoje, remete ao uso de uma técnica, a um método do bem-viver, a uma relação essencial que deve existir entre o homem e sua realidade. Essa técnica é totalitária porque não permite questionamentos: está implícita no modo de vida burguês, nas relações econômicas que a fundam e, principalmente, na relação que a sociedade estabelece com o mundo, dentro de seu isolamento da natureza.
Logo, a arte da felicidade nada mais é que um manual de como seguir o modo de vida autoritário da ordem idealizada dentro de uma razão dominadora. Para ser feliz o indivíduo deve interiorizar uma série de valores que são fundamentais para que sua “paz de espírito" seja garantida. Essa razão não se preocupa com a questão cultural ao utilizar um discurso pautado em uma realidade onde a relação entre homem e mundo possa lhe parecer estranha: a razão totalitária se apossa de qualquer credo, de qualquer discurso, com o intuito de transformá-lo em ajuda para que seu modo de vida ordenador possa ser garantido. Os livros de auto-ajuda são a prova disso: nem mesmo Maquiavel foi perdoado quando sua obra O Príncipe recebeu uma leitura dentro dessa proposta. A razão totalizadora é anacrônica e sem pudores: um texto sobre política torna-se uma manual para a vida, um pensamento pautado numa cultura oriental pode, muito bem, ajudar na tarefa de socorrer os depressivos em potencial.
Longe de ser um manual para a felicidade, o livro em questão não deixa de remeter a uma arte. Essa arte não deixa de apontar, assim como na arte antiga, à essências e formas ideais. Contudo, mais uma vez podemos observar o caráter histórico das próprias idéias – que podem ser entendidas como palavras silenciosas em nosso pensar – quando observamos que essas essências remetem ao mito moderno da razão, criando uma realidade onde as causas e efeitos são tidos como necessários, como uma expressão matemática sufocante e autoritária.
Os guias para uma vida feliz e plena dentro de uma realidade caótica, sufocante e sem referências, enquadram-se dentro de uma das mais cruéis faces da indústria cultural, a saber, aquela que se disfarça de esperança, quando na verdade busca, ao invés de negar a realidade angustiante, afirmá-la com mórbida sutileza.

13.9.08

Alegria, alegria...

A razão instrumental traz em si a inscrição que justifica o status mítico adquirido por ela em nossos tempos.
A matemática, ao sistematizar a idéia de ciência dentro de um progresso contínuo, sustenta a necessidade causal de todas as ações humanas. Ao fazer isso necessariamente terei aquilo, ou ainda, segundo afirma Horkheimer: “a ciência é uma tal ordenação dos fatos de nossa experiência que ela permite, finalmente, alcançar cada vez, em um lugar exato do espaço e do tempo, aquilo que exatamente deve ser esperado ali”.
O problema dessa razão autônoma é o seu paradoxo: a causalidade de suas operações e de seus sistemas engessam tudo o que é racional, e para essa razão tudo é racional. Dentro de uma crença em formas estipuladas pelas verdades ordenadoras do mundo colocadas nesse mundo pela ciência, a razão ignora sua impotência em explicar a existência, segue o rumo de sua própria alienação, entregando todas as suas manifestações objetivas às problemáticas leis de causas e efeitos.
Dentro desse mundo objetivo a sociedade entrega-se a uma ordem imanente. Essa ordem, uma vez onipresente, manifesta-se no que há de mais banal e no que há de mais incomum. Dentro das instituições, no caminho de volta pra casa, nos relacionamentos amorosos, nas tragédias pessoais, na conversa de bar, na política, nos movimentos sociais, nas amizades, nos livros que lemos, nos meios de comunicação... Tudo é ditado pelo mito da razão, tudo é levado ao progresso sobrenatural transformado em natural.
Quando a dor da separação do mundo, causada pela razão isoladora, manisfesta a esperança, encontramos, por exemplo, nos programas de humor, a saída para tal indicativo de uma vontade de reconciliação com o real. Os problemas sociais, mas, mais ainda, a angústia de ter perdido sua referência como ser humano dentro de um meio natural leva os indivíduos ao risco de um constante pessimismo frente a essa realidade velada pela divindade instrumental. A alegria funciona para o homem moderno como uma prece: os programas de humor trazem a seus espectadores a idéia de que, dentro de um cenário de dor e sem referências, existe, na verdade, uma ordem onde os fatos negativos representam algo para ser tomado com bom humor, pois o que rege toda a ordem social caminha no ritmo do progresso pautado pela ciência e pela tecnologia. Não há motivos para o pessimismo, pois a vida, com todas as suas dificuldades, deve ser encarada com alegria e sempre dentro de uma perspectiva que sustente a máxima “dias melhores virão”. Tal pensamento nada mais é do que a expressão de uma lógica natural, imanente à própria existência.
No nordestino estilizado que traz sua posição social como fantasia de bobo da corte ou nos casais infiéis que manisfestam a angústia de uma ditadura da ordem familiar (alguns quadros do Zorra Total), nos amigos migrantes que, dentro de um meio que pratica a exclusão do “diferente”, têm sempre que buscar na velha "malandragem carioca" - algo fora de sua cultura - a técnica para sobreviver, adequando-se ao meio sufocante (Os Trapalhões), na escola precária do professor que ganha mal, no político corrupto (quadros do antigo Chico Anísio Show) encontramos, mais do que qualquer alegria, a violência e o totalitarismo de uma razão que não permite a quebra de sua ordem. A idéia de que tudo está bem e que a verdade sempre prevalece é impressa no sujeito, que nesse momento manifesta sua condição de objeto, mero passivo que, tal como a natureza fora de sua bolha racional, sofre a invasão das generalizações desumanas.
A alegria, dentro desse quadro, apresenta-se como a dor disfarçada, como o necessário sacrifício do crente frente à divindade. O sorriso é um esforço necessário, a alegria é um sentimento que se torna perigoso para quem o rejeita. No seu local de trabalho, na roda de amigos, na escola ou universidade a lei é o bom humor. O "bom dia" matinal traz impresso em suas duas palavras a certeza de que com otimismo tudo é possível, mas, mais ainda, traz impresso o progresso ditado pela indústria cultural, anjo enviado pela razão instrumental.
Ao sorrir, manifestamos a dor, o cabresto e a história. Expressamos o vazio e a perda de um ponto de apoio para a própria existência. Apenas o sofrimento e suas manifestações, nessa realidade, pode ajudar a razão a olhar para si mesma como incompleta. O otimismo é sua salvação, a alegria e o bom humor garantem sua onipotência. O pecado é ser negativo!

7.9.08

Mímesis, espelho da razão.

Em sua história o homem sempre precisou buscar a sobrevivência dentro do espaço natural. Tal proposição já traz implícita uma divisão entre sujeito e objeto. Essa divisão não existiu em toda a história desse homem, mas revela-se como uma faceta relativamente recente dentro do desenvolvimento da noção de razão, dentro dessa história.
No passado onde não existia um discurso pautado por uma razão dominadora, buscando o que hoje podemos chamar de mundo organizado, o homem buscava sua sobrevivência de modo diferenciado.
O conhecimento de hoje revela-se como a busca de um controle da natureza por parte do sujeito do conhecimento que anula o objeto, buscando a autoconservação humana dentro da divisão comentada acima. Mas no período que antecedeu a esse processo a busca por essa autoconservação instintiva se deu pela busca de uma identidade com a natureza onde se encontrava o homem, ou seja, aquilo que podemos chamar de mímesis.
A mímesis é a busca do homem pelo momento em que há uma identidade entre ele e a natureza, mas não é a sua simples imitação. O homem, inserido no espaço natural, não buscava simplesmente a cópia desse natural, pois nesse momento já se via como algo que não é a própria natureza – embora a divisão entre sujeito e objeto ainda não existisse. O homem, através da mímesis, e entendendo que não poderia se igualar de forma objetiva à natureza, buscava se igualar a ela de forma criadora. A mímeses não recria a natureza mesma, mas surge como estágio onde o conhecimento desse meio cria uma reconciliação entre homem e mundo. Dentro da mímesis não se busca, como na razão instrumental, o conhecimento do mundo tal como é, mas, dentro dessa busca mimética do igualar-se à natureza, busca romper a tensão entre homem e mundo, mantendo a harmonia entre os dois pólos dialéticos.
A mímesis, por ser uma forma de conhecer o mundo que foge aos conceitos, ao discurso da razão científica ou instrumental, desbanca a razão dentro da idéia de que esta pode explicar e dominar o mundo de forma absoluta. A separação entre sujeito e objeto, dentro da razão científica, coloca o sujeito como único responsável pelo conhecimento, tratando o objeto como passivo, ou ainda como aquele que molda-se aos ditames dessa razão dominadora. A mímesis reconhece que o homem não é o mesmo que a natureza, pois é como um ente inserido nela, mas, ao mesmo tempo, não coloca o homem como dominador dessa realidade, buscando incorporá-lo dentro dela de modo reconciliador.
Dentro dessa distinção entre mímesis e racionalidade, podemos tomar como tarefa da mímesis ajudar a colocar a razão, que nesse momento se apresenta como dominadora, em seu devido lugar. Algo como a crítica da razão kantiana, mas de modo ainda mais crítico, pois, ao contrário de Kant, não exalta a razão como faculdade por excelência, ou seja, a única que pode proporcionar conhecimento sobre o mundo. Nesse momento o homem precisa, através de uma rememoração, recuperar aquilo que perdeu quando deixou de lado a mímesis para guiar-se unicamente pela razão. Esse processo iniciou-se quando o homem adotou os mitos, passando pelo nascimento do logos filosófico até chegar ao iluminismo, ponto em que a distinção entre sujeito e objeto tomou sua sustentabilidade conceitual.
Mas como o homem poderia recuperar esse momento mimético? Trata-se de voltar a viver esse passado? Primeiramente haveria a necessidade de criar uma espécie de contato com essa natureza mimética, de encontrar em algum evento aquela forma de conhecimento esquecida pela razão. Nesse momento destacamos a arte que, segundo Adorno, apresenta-se como aquela que recupera o instante mimético entre homem e natureza, mas não se trata de retornar a essa natureza, pois a transformação dada já agiu no sujeito racional, dentro de sua separação com o objeto. Ao mesmo tempo a arte, através de sua relação mímética, não possui o compromisso estético dentro da razão dominadora, que é puramente um compromisso ideológico. A arte, enquanto manifestação autônoma em relação à razão, mostra o mundo fora do discurso conceitual, pautado pela razão científica. Ela mostra ao homem não o belo formal, mas, dentro dessa concepção, o feio revelador que assim como na antiguidade não imita, mas mantém com o meio uma relação criadora. A partir disso a razão – que é a única que pode realizar essa auto-crítica – compreende que não pode explicar o que a arte expressa, reconhecendo-se como impossibilitada de realizar o domínio absoluto que busca, recuperando seu instante de passividade e de reconhecimento de suas limitações. Aqui a razão deixa de ser dominadora, violenta e repressiva, deixa de procurar explicar a totalidade, e rende-se a outra condição ao enxergar a mímesis, de certo modo, como um espelho que reflete o feio real disfarçado de belo dentro de um status mítico adquirido pelo conceito.
Nesse contexto a mímesis representa a esperança de libertação do homem dentro do domínio da razão instrumental. Compreender a mímesis como esperança implica em compreender, ao mesmo tempo, a relação que foi estabelecida entre homem e natureza. Uma vez isolado de sua condição natural, o homem reprimiu seus instintos vitais frente ao mundo. O equilíbrio entre Apolo e Dionísio buscado por Nietzsche reflete essa perda da condição natural do homem.
Pensando no cotidiano dentro das grandes cidades podemos compreender como esse isolamento se dá. A cidade funciona como uma bolha onde o homem se esconde da natureza, revelando seu medo inicial em relação à mesma. O homem moderno isolou-se dentro da ciência, da técnica e dos conceitos que buscam explicar a totalidade do mundo, criando um mito que faz com que os dois pólos dialéticos, a saber, o mundo e o homem mesmo deixem de ter uma relação necessária para que o processo criador fora da racionalidade dominadora possa livrá-lo da dor da separação de seu passado natural.
Estar na bolha significa estar fora da relação fundamentalmente dialética entre sujeito e objeto. Significa viver o irreal, ou seja, o racional que, na verdade, revela-se como o irracional autoritário e repressor da civilização moderna.