7.9.08

Mímesis, espelho da razão.

Em sua história o homem sempre precisou buscar a sobrevivência dentro do espaço natural. Tal proposição já traz implícita uma divisão entre sujeito e objeto. Essa divisão não existiu em toda a história desse homem, mas revela-se como uma faceta relativamente recente dentro do desenvolvimento da noção de razão, dentro dessa história.
No passado onde não existia um discurso pautado por uma razão dominadora, buscando o que hoje podemos chamar de mundo organizado, o homem buscava sua sobrevivência de modo diferenciado.
O conhecimento de hoje revela-se como a busca de um controle da natureza por parte do sujeito do conhecimento que anula o objeto, buscando a autoconservação humana dentro da divisão comentada acima. Mas no período que antecedeu a esse processo a busca por essa autoconservação instintiva se deu pela busca de uma identidade com a natureza onde se encontrava o homem, ou seja, aquilo que podemos chamar de mímesis.
A mímesis é a busca do homem pelo momento em que há uma identidade entre ele e a natureza, mas não é a sua simples imitação. O homem, inserido no espaço natural, não buscava simplesmente a cópia desse natural, pois nesse momento já se via como algo que não é a própria natureza – embora a divisão entre sujeito e objeto ainda não existisse. O homem, através da mímesis, e entendendo que não poderia se igualar de forma objetiva à natureza, buscava se igualar a ela de forma criadora. A mímeses não recria a natureza mesma, mas surge como estágio onde o conhecimento desse meio cria uma reconciliação entre homem e mundo. Dentro da mímesis não se busca, como na razão instrumental, o conhecimento do mundo tal como é, mas, dentro dessa busca mimética do igualar-se à natureza, busca romper a tensão entre homem e mundo, mantendo a harmonia entre os dois pólos dialéticos.
A mímesis, por ser uma forma de conhecer o mundo que foge aos conceitos, ao discurso da razão científica ou instrumental, desbanca a razão dentro da idéia de que esta pode explicar e dominar o mundo de forma absoluta. A separação entre sujeito e objeto, dentro da razão científica, coloca o sujeito como único responsável pelo conhecimento, tratando o objeto como passivo, ou ainda como aquele que molda-se aos ditames dessa razão dominadora. A mímesis reconhece que o homem não é o mesmo que a natureza, pois é como um ente inserido nela, mas, ao mesmo tempo, não coloca o homem como dominador dessa realidade, buscando incorporá-lo dentro dela de modo reconciliador.
Dentro dessa distinção entre mímesis e racionalidade, podemos tomar como tarefa da mímesis ajudar a colocar a razão, que nesse momento se apresenta como dominadora, em seu devido lugar. Algo como a crítica da razão kantiana, mas de modo ainda mais crítico, pois, ao contrário de Kant, não exalta a razão como faculdade por excelência, ou seja, a única que pode proporcionar conhecimento sobre o mundo. Nesse momento o homem precisa, através de uma rememoração, recuperar aquilo que perdeu quando deixou de lado a mímesis para guiar-se unicamente pela razão. Esse processo iniciou-se quando o homem adotou os mitos, passando pelo nascimento do logos filosófico até chegar ao iluminismo, ponto em que a distinção entre sujeito e objeto tomou sua sustentabilidade conceitual.
Mas como o homem poderia recuperar esse momento mimético? Trata-se de voltar a viver esse passado? Primeiramente haveria a necessidade de criar uma espécie de contato com essa natureza mimética, de encontrar em algum evento aquela forma de conhecimento esquecida pela razão. Nesse momento destacamos a arte que, segundo Adorno, apresenta-se como aquela que recupera o instante mimético entre homem e natureza, mas não se trata de retornar a essa natureza, pois a transformação dada já agiu no sujeito racional, dentro de sua separação com o objeto. Ao mesmo tempo a arte, através de sua relação mímética, não possui o compromisso estético dentro da razão dominadora, que é puramente um compromisso ideológico. A arte, enquanto manifestação autônoma em relação à razão, mostra o mundo fora do discurso conceitual, pautado pela razão científica. Ela mostra ao homem não o belo formal, mas, dentro dessa concepção, o feio revelador que assim como na antiguidade não imita, mas mantém com o meio uma relação criadora. A partir disso a razão – que é a única que pode realizar essa auto-crítica – compreende que não pode explicar o que a arte expressa, reconhecendo-se como impossibilitada de realizar o domínio absoluto que busca, recuperando seu instante de passividade e de reconhecimento de suas limitações. Aqui a razão deixa de ser dominadora, violenta e repressiva, deixa de procurar explicar a totalidade, e rende-se a outra condição ao enxergar a mímesis, de certo modo, como um espelho que reflete o feio real disfarçado de belo dentro de um status mítico adquirido pelo conceito.
Nesse contexto a mímesis representa a esperança de libertação do homem dentro do domínio da razão instrumental. Compreender a mímesis como esperança implica em compreender, ao mesmo tempo, a relação que foi estabelecida entre homem e natureza. Uma vez isolado de sua condição natural, o homem reprimiu seus instintos vitais frente ao mundo. O equilíbrio entre Apolo e Dionísio buscado por Nietzsche reflete essa perda da condição natural do homem.
Pensando no cotidiano dentro das grandes cidades podemos compreender como esse isolamento se dá. A cidade funciona como uma bolha onde o homem se esconde da natureza, revelando seu medo inicial em relação à mesma. O homem moderno isolou-se dentro da ciência, da técnica e dos conceitos que buscam explicar a totalidade do mundo, criando um mito que faz com que os dois pólos dialéticos, a saber, o mundo e o homem mesmo deixem de ter uma relação necessária para que o processo criador fora da racionalidade dominadora possa livrá-lo da dor da separação de seu passado natural.
Estar na bolha significa estar fora da relação fundamentalmente dialética entre sujeito e objeto. Significa viver o irreal, ou seja, o racional que, na verdade, revela-se como o irracional autoritário e repressor da civilização moderna.

2 comentários:

Elaine Cristina disse...

Legal o exemplo da bolha... Quando Von Uexkull usa o exemplo do sujeito na bolha ele mostra algo que para mim é o que torna a existência mais bela. A bolha delimita as possibilidades do sujeito de conhecer, de perceber o mundo, é o que possibilita a subjetividade e a torna irredutível às demais experiências. Enfim, é o que torna cada sujeito o que é, único e especial e este sujeito, por sua vez, tem uma relação única com os objetos no mundo. Nesse sentido, nenhum sujeito conhece um objeto enquanto tal, o objeto em sua essencia, cada um conhece a partir de seu próprio ponto de vista.
Mas o homem, com pretensão de um ponto de vista privilegiado, se fecha em uma outra bolha, a que você disse, uma bolha plástica eu diria, delimitada pelo que pretende ser puramente racional, que ignora todas as outras possibilidades de conhecer o mundo e ainda assim se pretende como uma forma de superior.

rafael andolini disse...

sou q agradeço!!!
senão fosse vcs eu teria apanhado sozinho naquela porra!
agora to correndo [tempo na lan]
mas depois eu volto e comento seu artigo direito!