13.9.08

Alegria, alegria...

A razão instrumental traz em si a inscrição que justifica o status mítico adquirido por ela em nossos tempos.
A matemática, ao sistematizar a idéia de ciência dentro de um progresso contínuo, sustenta a necessidade causal de todas as ações humanas. Ao fazer isso necessariamente terei aquilo, ou ainda, segundo afirma Horkheimer: “a ciência é uma tal ordenação dos fatos de nossa experiência que ela permite, finalmente, alcançar cada vez, em um lugar exato do espaço e do tempo, aquilo que exatamente deve ser esperado ali”.
O problema dessa razão autônoma é o seu paradoxo: a causalidade de suas operações e de seus sistemas engessam tudo o que é racional, e para essa razão tudo é racional. Dentro de uma crença em formas estipuladas pelas verdades ordenadoras do mundo colocadas nesse mundo pela ciência, a razão ignora sua impotência em explicar a existência, segue o rumo de sua própria alienação, entregando todas as suas manifestações objetivas às problemáticas leis de causas e efeitos.
Dentro desse mundo objetivo a sociedade entrega-se a uma ordem imanente. Essa ordem, uma vez onipresente, manifesta-se no que há de mais banal e no que há de mais incomum. Dentro das instituições, no caminho de volta pra casa, nos relacionamentos amorosos, nas tragédias pessoais, na conversa de bar, na política, nos movimentos sociais, nas amizades, nos livros que lemos, nos meios de comunicação... Tudo é ditado pelo mito da razão, tudo é levado ao progresso sobrenatural transformado em natural.
Quando a dor da separação do mundo, causada pela razão isoladora, manisfesta a esperança, encontramos, por exemplo, nos programas de humor, a saída para tal indicativo de uma vontade de reconciliação com o real. Os problemas sociais, mas, mais ainda, a angústia de ter perdido sua referência como ser humano dentro de um meio natural leva os indivíduos ao risco de um constante pessimismo frente a essa realidade velada pela divindade instrumental. A alegria funciona para o homem moderno como uma prece: os programas de humor trazem a seus espectadores a idéia de que, dentro de um cenário de dor e sem referências, existe, na verdade, uma ordem onde os fatos negativos representam algo para ser tomado com bom humor, pois o que rege toda a ordem social caminha no ritmo do progresso pautado pela ciência e pela tecnologia. Não há motivos para o pessimismo, pois a vida, com todas as suas dificuldades, deve ser encarada com alegria e sempre dentro de uma perspectiva que sustente a máxima “dias melhores virão”. Tal pensamento nada mais é do que a expressão de uma lógica natural, imanente à própria existência.
No nordestino estilizado que traz sua posição social como fantasia de bobo da corte ou nos casais infiéis que manisfestam a angústia de uma ditadura da ordem familiar (alguns quadros do Zorra Total), nos amigos migrantes que, dentro de um meio que pratica a exclusão do “diferente”, têm sempre que buscar na velha "malandragem carioca" - algo fora de sua cultura - a técnica para sobreviver, adequando-se ao meio sufocante (Os Trapalhões), na escola precária do professor que ganha mal, no político corrupto (quadros do antigo Chico Anísio Show) encontramos, mais do que qualquer alegria, a violência e o totalitarismo de uma razão que não permite a quebra de sua ordem. A idéia de que tudo está bem e que a verdade sempre prevalece é impressa no sujeito, que nesse momento manifesta sua condição de objeto, mero passivo que, tal como a natureza fora de sua bolha racional, sofre a invasão das generalizações desumanas.
A alegria, dentro desse quadro, apresenta-se como a dor disfarçada, como o necessário sacrifício do crente frente à divindade. O sorriso é um esforço necessário, a alegria é um sentimento que se torna perigoso para quem o rejeita. No seu local de trabalho, na roda de amigos, na escola ou universidade a lei é o bom humor. O "bom dia" matinal traz impresso em suas duas palavras a certeza de que com otimismo tudo é possível, mas, mais ainda, traz impresso o progresso ditado pela indústria cultural, anjo enviado pela razão instrumental.
Ao sorrir, manifestamos a dor, o cabresto e a história. Expressamos o vazio e a perda de um ponto de apoio para a própria existência. Apenas o sofrimento e suas manifestações, nessa realidade, pode ajudar a razão a olhar para si mesma como incompleta. O otimismo é sua salvação, a alegria e o bom humor garantem sua onipotência. O pecado é ser negativo!

Um comentário:

Beat disse...

Grande texto cara, você está me deixando muito curioso para ler Horkheimer e Adorno. Ainda mais porque nas leituras de Camus que fiz recentemente, encontrei essa mesma crítica à razão e a denúncia da "dor da separação desoladora, causada pela razão isoladora" como você diz, e colocando essa questão da esperança como uma forma de amenizar essa dor. O ensaio "O mito de Sísifo" trata um pouco disso.
Parabéns pelo texto.