21.5.06

Cai, não fica nada!

Existe um troço chamado democracia representativa: você vota nos caras que acha que devem representar os seus interesses... Após esse voto você passa toda a responsabilidade de suas ações pra esses representantes e vai seguir a sua vida. Você vai se ocupar do seu emprego, de ganhar dinheiro, torcer pelo seu time, comprar uma TV nova, uma calça nova, uma bolsa nova, comer uma mina nova, dar pro cara certo, no dia certo, na hora certa, no lugar certo, subir de cargo, beber o máximo que puder, correr o máximo que puder, mas de que? Para onde? Por que? Suas ações agora são essas... Você pensa pequeno, mas e onde ficou o cara que você elegeu a essa altura? Ah, você já fez a sua parte... Agora é com ele!

Existe um troço chamado ódio: você vive, trabalha, paga alguns impostos, não rouba, não mata, não cheira, não ouve rap, não fala gírias fora do eixo universitário. Você pára com seu lindo carro num farol e um moleque fedido e maltrapilho te aborda com algo que possa te machucar caso você não entregue o que ele quer, você está com a sua namorada numa quebrada em São Caetano, em São Bernardo, em São Paulo, em Florianópolis, em Itaquera, em Perus, em Osasco e de repente alguém bate no vidro, manda você descer pelado mesmo, sua namorada envergonhada. Seu carro tem chaves... Elas já não estão mais em suas mãos... Você tem ódio, você vê uma rebelião no presídio, assiste ao programa do Ratinho e o cara critica os direitos humanos por defender aqueles bandidos. “Tem que matar esses bandidos, tem que atear fogo neles... Marginais, marginais, marginais...” É isso mesmo!

Existe um troço chamado estado: ele te defende, te organiza, te ajuda a ser alguém, te diz o que tem de fazer, como fazer, te dá o xampu pra caspa, o creme pra rugas, a roupa legal, o celular que tira fotos, a cerveja nossa de cada dia, a lipoaspiração, o emprego, o giz, a lousa, os amigos, os políticos, o ódio, uma corporação corrupta e enganadora, seu anjo salvador. Ela te protege dos marginais malditos, te guarda. Anjo do inferno, amigo dos inimigos, administrador real do que te entorpece. Não há forma da onde ele enxerga, não há regra pra ele... Os bandidos, os velhos, os trabalhadores, os adolescentes, os emos, os grunges, os gays, os biólogos, os coloristas, os carros, os celulares, os clipes da MTV... O estado é Deus. Deus pertence a uma classe, Deus tem empresas e reúne-se na FIESP pra decidir o que cada um vai ser, comer, vestir, cheirar, beijar, olhar, ouvir, comprar, votar, odiar.

Existe um troço chamado crime organizado: sem baixar a cabeça, fazendo acordos com o estado, com o ódio, com a democracia representativa. Podem fazer o diabo... Matar policiais, matar civis, parar a cidade, parar o céu, parar o romance, o show, a MTV, a Globo, o petróleo, o tempo... Eles têm armas, eles sabem de muita coisa sobre o estado, querem o que te entorpece, o que te deixa com ódio, querem o que você vota, come, beija, cheira, veste, compra, trabalha... Se o crime não tiver o estado, ele perde sua referência marginalizada e sucumbe na pior crise existencial de uma classe.

Existe um troço que é... Você: olhando pra tudo isso, votando, com ódio, comprando, bebendo, beijando, comendo, trabalhando, casando, assistindo MTV, clipes, ouvindo funk, rock, axé, no carro, em casa, no estado... Seu amigo protetor que te dá o xampu, o creme, a mulher, o filho, a casa, a roupa, o amor, o dia, a noite, a internet, o divórcio, a MTV, a Globo, a moça do tempo, o Corinthians, o São Paulo, o campeonato espanhol, italiano, brasileiro, japonês... Você olha o crime: contra o estado, seu amigo, protetor, Deus que tudo dá! Você não escolheu isso, você votou, você fez o que devia, parou pra pensar nisso tudo por alguns dias antes das eleições, trabalhou, se fodeu, pagou impostos sem roubar, matar, cheirar, fumar, casado, divorciado, apaixonado, ficando, pegando, catando, trepando, rindo, se afirmando com ódio porque eles não têm esse direito, porque cada um que procure o seu caminho pequeno e solitário, porque você já colocou aquele cara lá, porque o estado diz que a polícia te defende e que o pobre pai da fulana morreu num tiroteio entre os marginais e a polícia que pertence ao estado que te ajuda, protege, veste, alimenta, decide, se você vai votar pra se livrar de se preocupar com os bandidos que são um refugo daquilo que ele produz pra te fazer viver, comer, cheirar, beijar, ouvir, sorrir, olhar, odiar, se indignar com o refugo do estado, que decidiu por você até a sua decisão de votar e esquecer de tudo, de permitir a produção do refugo porque você quer comer, comprar, consumir, trepar, cheirar, estudar, dormir, escrever textos idiotas pro blog, pro ORKUT, pra sua amada, pra sua mãe no dia dela, na madrugada onde o refugo pede pra ter os mesmos direitos de ser controlado e beber, comprar, amar, se casar e odiar o que vai contra o estado, que nesse momento é ele, que quer votar e esquecer e se livrar de tudo isso, que quer entrar nessa roda diabólica onde as pessoas ODEIAM O QUE ELAS AJUDAM A PRODUZIR E NEGAM ISSO ACEITANDO AQUILO QUE AS OMITE!


- Sobre a indignação alheia frente à violência desses dias, onde não existem mocinhos porque todos são culpados e coniventes. Todos têm suas mãos sujas de sangue, embora essa sujeira toda tenha ficado lá no começo do texto com alguém escolhido pra levar nossos pesadelos e medos para o mais longe possível daqui, onde não existam xampus, cerveja, o amor, o estado, o celular, a MTV e tudo aquilo que nos deixa adormecidos... Deitados eternamente... Em berço "esplêndido"!