28.6.10

Por quem torcer? Por que torcer?

Até que ponto o seu “amor” pelo Brasil permite uma risada? O ufanismo, em tempos de Copa, pode ser considerado perigoso? O sentimento do brasileiro em relação à pátria vem mudando nos últimos anos? 

No último dia 26, sábado, o recém estreado programa Legendários, da Rede Record de Televisão, dirigido pelo apresentador Marcos Mion exibiu uma matéria que pode alimentar as dúvidas acima expostas. Na matéria em questão, alguns membros do Legendários tinham uma missão no mínimo anti-diplomática. A tarefa dos apresentadores consistia em hastear, em pleno obelisco de Buenos Aires, uma flâmula brasileira, como uma conquista de território, nada mais apropriado para atrair audiência dos telespectadores em plena Copa do Mundo de Futebol. Com muita vigilância os destemidos Legendários conseguiram, ao final da matéria, cumprir a missão, elevando a flâmula brasileira na praça onde se encontra o símbolo nacional argentino e, ao mesmo tempo, também elevar a nossa arrogância (a qual acusamos de boca tão cheia os “hermanos”) disfarçada de malandragem verde-amarela. A piada final aponta para a tão conhecida rivalidade existente entre brasileiros e argentinos, casando-a com o humor agressivo em alta nos programas Pânico, da Rede TV, CQC, seu imitador um pouco mais politizado (mas não necessariamente melhor), da Rede Bandeirantes e Legendários, dos destemidos conquistadores do obelisco argentino. 

Mas qual a fonte de tanta raiva em relação aos argentinos? Quais os motivos para tanta rivalidade, que não se originou, mas apenas se reflete no futebol, principalmente em tempos de Copa do Mundo? Seria uma herança histórica decorrente dos conflitos bélicos? Mas será que o pior conflito que o Brasil já teve com uma nação não foi com o Uruguai? Não seria o próprio Uruguai nosso pior algoz em Copas do Mundo (muito mais que os argentinos)? De fato não temos um rancor histórico com o Uruguai como parecemos ter com os argentinos. Ao mesmo tempo não observamos, em nenhum outro país da América Latina, a raiva que encontramos nos argentinos em relação a nós mesmos. Qual a fonte da raiva? 

Não sou historiador, mas considero que, com certeza, há uma origem material para tanta rivalidade. Há uma origem material para tudo nesse mundo, bem sabemos, assim como há uma origem material para a ignorância e o equívoco. O ufanismo, por exemplo, teve origem na literatura de Afonso Celso e ganhou força na ditadura militar, reforçando as intenções políticas por traz da sua propaganda. Outra propaganda que teve sua origem histórica foi aquela, promovida por Adolf Hitler, que colocava o povo judeu como ratos para o povo alemão. Sim, os judeus tiveram impacto político e econômico na nação germânica assim como em toda história que permeou o Antigo Testamento bíblico. Os judeus podem mesmo ter sido como ratos na história, talvez ainda sejam, os argentinos podem mesmo serem dignos de raiva, bem como as sogras, bem como uma porção de coisas que acabam, não se sabe exatamente como, atingindo status de unanimidade na lista negra de determinadas culturas. Mas tudo com um motivo material que carrega outro, que carrega mais um e assim por diante, embora não seja unânime o conhecimento acerca de tais motivos. 

Já dizia Nelson Rodrigues que toda unanimidade é burra. Pode ser, embora a generalização seja discutível, mas, analisando os casos acima, é bem possível considerar a veracidade desta afirmativa. Talvez possamos dotar ao predicado “burra” a dose de irracionalidade que um sentimento de raiva canalizada pode conter em si. Explico: fomos selvagens até o momento (não exato, mas gradual) em que aprendemos a controlar nossa própria selvageria, até o momento em que dotamos o mundo da racionalidade que mudou ao longo da história, mudando também o mundo e o sujeito portador desta. A burrice pode ser considerada como falta de capacidade em exercer a razão, mas no caso da raiva canalizada, transformada em unanimidade, a burrice traz a marca do resquício irracional, da selvageria reprimida pela racionalidade que nos adestrou e consumiu o bom senso em relação à nossa própria selvageria. Hoje a repressão racional é movida pela própria selvageria reprimida. A raiva que temos, enquanto selvagens aprisionados, em relação à própria repressão deve ser canalizada socialmente para que não voltemos a nos esconder na caverna de outrora, para que não levemos à destruição nossa pátria de chuteiras, nossa amarela camisa pentacampeã. 

Mas o que isso tem a ver com a Argentina? O que isso tem a ver com futebol? O que o sujeito oprimido tem a ver com a rivalidade entre samba e tango? Mais uma vez explico: é na canalização da raiva disfarçada de racionalidade que encontramos os inimigos nacionais, que encontramos motivos para uma nação inteira levar seres humanos para câmaras de gás, que encontramos espaço para a propaganda ufanista que exalta nosso pedaço de terra por considerar, de modo inconsciente (irracional?), que existem nações inteiras que sofrem da mesma agressividade selvagem reprimida que nós sofremos, sendo necessário declarar este pedaço de terra como nosso porto seguro em relação à selva que muito nos lembra a selva de outros tempos. Canalizar a raiva, direcionando-a para um inimigo potencial é forma de extrapolarmos a raiva reprimida em relação a nós mesmos e em relação ao resto do mundo todo. É o preço por nos isolarmos da selva, criando nosso mundo administrado por uma ordem falsa e pretensiosa. Nossos inimigos? Os argentinos. Os inimigos deles? Nós mesmos. Dos alemães? O povo judeu. 

Brasil, segunda década do século XXI, o ano é 2010, um sentimento irradia dos reprimidos desta “tribo”; o crescimento econômico, proporcionando a farra consumista, a aprovação (quase unânime, perdoem pela maldade) de um presidente cujo perfil reforçou, em seu governo, e devido a sua própria biografia, uma identidade cultural apenas vista em tempos de ditadura (embora agora em tempos de “democracia”) são um dos elementos que compõem o pano de fundo da Copa do Mundo de Futebol. O esporte bretão, tão popular, fincado nas diversas culturas constituintes da constelação cultural brasileira, é a expressão do delírio do sentimento de ódio e medo entre as nações. Sim, jogamos com nossa civilidade por meio das práticas esportivas. Entre as quatro linhas temos regras que devem ser seguidas, assim como na política internacional, assim como na economia, embora nem sempre essas regras sejam seguidas a risca (como no gol de mão de Luis Fabiano, ou naquele outro de Tévez, totalmente impedido, ou ainda naquele da seleção inglesa contra a Alemanha que foi absurdamente anulado nas oitavas de final desta Copa, ou ainda nas práticas militares dos países imperialistas disfarçadas de missões de paz). Em tempos de Copa a repressão encontra novas forças, novas formas de expressão. A economia se aproveita bem disso, canaliza a raiva contra argentinos nos comerciais de cerveja, por exemplo, ou ainda nos programas de humor. Ora, o sentimento irradiado pelos integrantes do país que finalmente deixou de ser aquele do futuro e passou a ser este do presente encontra, na Copa do Mundo unida à selvageria reprimida, o rival de sempre: os argentinos! 

Finalmente voltamos à matéria deste último sábado apresentada no programa Legendários. Ora, a ofensa a um símbolo nacional, cujo caráter encontra expressões culturais, vai de encontro com a própria identidade que confere ao sujeito reprimido a segurança buscada por ele em relação ao resto do mundo. Logo, a ofensa ao símbolo nacional é a ofensa à própria integridade de um povo. Os nossos Legendários, ao executarem a missão de hastear a bandeira brasileira em território argentino, apenas demonstram que, em alguns brasileiros, o sentimento de raiva já começa a ganhar status de arrogância, de falta de respeito com aquilo que nós mesmos possuímos (símbolos culturais que conferem, em determinado território, a segura integridade a sujeitos reprimidos numa sociedade administrada por uma disfarçada irracionalidade). Mais do que uma brincadeira, o que podemos observar é que o Brasil começa a exibir, por meio de sua indústria cultural, uma pretensão nunca antes vista e, mais do que isso, uma arrogância que desconhece territórios. Até onde vai a tão falada passividade de um povo que possa aplaudir ou que produz uma matéria de humor que exerce, de modo agressivo, ataque a um símbolo cultural de outro povo? 

Reconheçamos que, na caminhada humana rumo a uma racionalidade que se integre ao mundo de fato, temos que encontrar lugar para o respeito e para o reconhecimento de um princípio básico, já exposto em diversos tempos, por diversas culturas, sejam elas orientais ou ocidentais: não fazer aos outros o que não se quer para si mesmo. Simples como um jogo de futebol, longe da complexidade que tenta encontrar justificativas para a raiva gratuita entre povos, entre nações. O que observamos no progresso material de nosso país, no crescimento desenfreado de uma nação que se entregou de vez ao jogo sujo do capital é que, de fato, nenhuma realização, seja ela material ou espiritual, de um povo, possui bases fortes se não apoiar-se numa evolução moral.  Não há outra forma de aliviar a repressão apoiada no ranger de dentes ao longo dos séculos. O selvagem apenas compreende sua posição social na medida em que se reconhece em meio aos demais seres a sua volta, na medida em que compreende seu papel entre estes. Aos poucos os instintos reprimidos deixam de encontrar lugar na raiva e passam a transformar-se pelo desenvolvimento da capacidade de exercer a moral. Não há mais a canalização da destruição reprimida, mas o exercício da fraternidade como base da integridade humana. 

Tenho meus palpites, como muitos brasileiros aprecio o futebol, torço pela seleção, mas, devo reconhecer que, após assistir a programas como Legendários, senti uma pontinha de vontade de torcer para os argentinos. Pensei que talvez isso fosse calar as risadas burras daqueles que apreciaram a brincadeira feita em Buenos Aires, mas, escrevendo estas linhas, devo retificar meu pensamento... A irracionalidade não precisa de motivos para exercer sua violência assim como o selvagem não pensa para agir: seja qual for o acontecimento, o inimigo é sempre o inimigo, e a vitória ou a derrota sobre ele representam o mesmo combustível que alimenta a uma sociedade reprimida e desconhecedora da caridade que derruba fronteiras de modo diferente do modo que se baseia na raiva recíproca, que não possui flâmulas ou camisas coloridas, que não comemora em detrimento da insatisfação de um inimigo derrotado. Não adianta torcer para que haja um vencedor, pois a vitória baseada na irracionalidade apenas reflete a supremacia da falta de amor entre os homens. As bases materiais continuam a existir, mas determinadas pela bancarrota moral na qual nos encontramos, brasileiros ou argentinos.

Pra quem não assistiu, eis o vídeo da matéria do, diga-se de passagem, fraquíssimo programa dirigido por Marcos Mion:
http://noticias.r7.com/legendarios/news/elcio-coronato-hasteia-bandeira-do-brasil-no-obelisco-de-buenos-aires-20100627.html

20.6.10

Que tal tentar?

Não compreenderemos o que significa amar ao próximo, de fato, enquanto não praticarmos a caridade em favor deste próximo, seja no auxílio material ou na própria convivência cotidiana, auxiliando e tolerando as diferenças e ofensas que venham a surgir nos mais variados setores da vida. Amar, mais do que procurar conceituar seu significado, por meio da limitada linguagem terrena, é exercitar aquilo que revelará em nós uma capacidade que ainda permacerá latente enquanto insistirmos no ócio e no egoísmo de nossas ações.

13.6.10

Quanta Luz!!!

Ontem, na Praça da Sé, em São Paulo, os Anjos da Noite encontravam-se em meio ao frio cortante do inverno de nossa capital. Estávamos fazendo o que sempre fazemos aos sábados a noite: distribuindo alimentos e cobertores aos moradores de rua.

Um fato que me tocou profundamente diz respeito a uma cena que presenciei. Assim que chegamos à Praça da Sé avistei um grupo de protestantes que fazia uma oração de um jeito bem característico. Em círculo pareciam pedir a Deus e a Jesus que enviassem bênçãos para todas aquelas pessoas que lá se encontravam em condição de rua. Observei que já haviam encerrado a assistência material, distribuindo alguns lanches e café com leite para aquecer aquelas pessoas.

Achei incrível que no meio daquela atmosfera fria e triste que tem a Praça da Sé, principalmente por abrigar, assim como grande parte do Centro de São Paulo, diversos moradores de rua e alguns marginais (vide os casos cotidianos de assaltos a transeuntes do local) o que senti foi, muito mais que algo ruim, uma coisa muito boa, como se aquele local houvesse se tornado um ponto de luz na escuridão da metrópole que nunca para, a metrópole que possui tantos indivíduos que, na pressa do dia-a-dia e no patamar moral em que nos encontramos, mal têm tempo de olharem para além de si mesmos.

Na pressa do momento, trabalhando para tentar atender a todos os necessitados de pão, agasalho e atenção que ali se encontravam, tive tempo de refletir sobre as diferentes interpretações acerca do evangelho do Cristo. Ora, o grupo Anjos da Noite, muito antes de representar qualquer religião (embora possua muitos adeptos espíritas), busca representar a solidariedade por meio do código moral ensinado por Jesus. Diferentemente do grupo de evangélicos ali presentes, temos outras formas de pedir bênçãos, em nome do Mestre querido, para os necessitados que nos surgem. Mas o que me chamou a atenção foi que, mesmo que se interprete ou louve os ensinamentos do Evangelho de forma diferente, seja com orações em alto volume, seja com as luzes apagadas e os olhos fechados, seja com hinos tradicionais, o que está na base daquilo que Jesus veio nos ensinar diz respeito, principalmente, ao amor ao próximo, diz respeito à caridade e solidariedade.

Ali, naquela praça, estávamos todos, em nome de nosso grande Mestre, praticando um pouco do amor que Ele nos ensinou e exerceu, estávamos aprendendo um pouquinho mais sobre o que significa servir ao próximo. Em nome do Mestre amado aquelas pessoas estavam recebendo um pouco daquilo que precisavam, a sua grande caridade foi nos ensinar para que pudéssemos aprender a servir os que viriam em nosso caminho sedentos de ajuda.

No Sermão da Montanha Ele já dizia que não veio para mudar as leis. O que Ele quis dizer com isso? Ora, o Mestre não veio para mudar regras morais que diziam respeito a ideais do bem e da justiça, mas veio para preenchê-las de amor, de uma compreensão mais ampla, que não se prende apenas a exercer o que foi determinado, mas a fazê-lo com sentimento, com a emoção que é combustível do homem no mundo. Sim, o homem busca emoções, mas cada um busca o tipo de emoção que lhe corresponde ao seu respectivo adiantamento moral.

Assim como o Mestre não veio para mudar as palavras escritas em forma de lei, não devemos querer mudar a religião que não corresponde ao nosso credo, não devemos criticar em forma de preconceito a fé alheia. O que devemos fazer, baseando-nos na atitude do Mestre em relação às leis estabelecidas, é procurar pregar que todo credo deve ter como preenchimento o amor ao próximo, independente da interpretação que façam sobre as Escrituras. Protestantes, católicos ou espíritas devem fazer como o Mestre em comum ensinou: não devemos mudar, mas preencher de amor a vida. O pão, o agasalho e o cobertor do evangélico é o mesmo do católico, que é o mesmo do espírita.

Por isso que, naquele momento, na Praça da Sé,  senti aquela sensação tão boa. O grande Mestre estava ali, nas nossas atitudes, nas nossas palavras, em nosso coração. Não mudamos nada no credo do outro, mas, agindo de maneira diferente, paradoxalmente, trabalhamos para o mesmo fim e enchemos aquele ambiente da mais celestial luz. Quantos credos... E quanta Luz!!!