18.9.08

"A Arte da Felicidade: um Manual para a Vida"

A concepção antiga de arte remetia, essencialmente, ao seguimento de uma série de técnicas para se chegar a uma estética ideal, que remetia ao que Platão denominava de boa mímesis, ou seja, aquela que se aproximava mais das formas do plano das idéias. A noção de arte, nesse tempo, não fazia referência alguma ao autor, mas sim ao seguimento de um decoro em torno da obra. O que fugia desse decoro não era considerado arte, ou seja, ao estabelecer uma regra para se fazer arte, a noção de plágio não existia. Não havia a preocupação com a originalidade, mas sim com a regra baseada num ideal estético.
Acredito que as palavras não possuem essência. Suas significações remetem a um conjunto de práticas sociais às quais elas, historicamente, remetem. Desse modo, o conceito de arte antigo foi se modificando ao longo da história, tomando as mais diferentes significações.
Creio que um problema das mudanças em torno de uma palavra, dentro de determinadas culturas, vem do fato de que certas palavras acabam ganhando generalizações que antes não lhes eram características. Com isso a palavra arte, em nossa sociedade, acabou atingindo um status generalizante que diz respeito ao título desse texto. Ora, se a noção de arte na antiguidade remetia ao uso de uma técnica, a uma prática ligada ao uso de uma espécie de metodologia – utilizando um termo anacrônico – para se chegar à boa mímesis platônica, o que observamos nos dias correntes é que a palavra arte, longe de remeter, necessariamente a uma técnica, perdeu suas limitações de definição.
O termo arte ganhou os mais diversos significados, e daí vem o problema em relação a seu uso: se esse uso na vida também tivesse sido ampliado seria natural que seu significado também o fosse, mas, ao contrário, o que se observa é que a noção de arte, dentro da sua realização no capitalismo tardio, sofreu um esvaziamento. A noção de arte, atualmente, dentro do senso comum, ainda deve muito ao romantismo que trata da sua definição, grosso modo, como uma realização subjetiva, uma manifestação do sentimento, remetendo à expressão, criação e interioridade.
Ora, a arte, nos dias correntes, ainda pode ser praticada por alguns desse modo, mas dentro de uma sociedade tecnicista, onde a arte passa a ser influenciada pelo avanço da tecnologia, vemos a velha noção de técnica voltar a rondar o termo. As técnicas fotográficas, cinematográficas, o desenho industrial, remetem a uma realidade onde a arte se torna material de reprodução, assim como os objetos consumidos diariamente pelas pessoas.
O que Adorno chamaria de “desestetização da arte” remete à perda da noção de beleza natural, fruto do distanciamento entre homem e natureza, onde essa beleza natural representava um objeto que não foi criado pelo homem, ou seja, não-identificado por ele. Dentro de um mundo onde o afastamento e a busca do domínio total por parte de uma razão instrumental, reprodutora de seus produtos necessariamente “criados” e sempre iguais, o não-identificado, o não-igual, ou ainda, o Outro, é algo inadmissível. A arte não poderia mais possuir status mimético – nem no sentido platônico nem no sentido adorniano.
A idealização da velha arte romântica não condiz com a realidade, e o uso do termo, com isso, perdeu seus limites. Em outros termos, o uso indiscriminado da palavra perdeu seus critérios, e nesse ponto chegamos ao objeto de crítica do texto.
O livro intitulado “A Arte da Felicidade: um Manual para a Vida”, escrito por Howard C. Cutler & Dalai Lama, tem como intenção orientar o seu leitor na direção de uma vida feliz, através de uma série de conselhos de Dalai Lama que buscam estimular a suposta capacidade que cada um possui para encontrar essa felicidade.
Sem intenção de remeter a culturas que, de longe, eu conheça - culturas orientais - quero remeter ao que o termo arte, dentro do título do livro, e do presente texto, significa dentro de uma sociedade ocidental, imersa na razão instrumental do sempre-igual. Talvez dentro das culturas orientais o tema ideal proposto pelo livro possa ser possível, mas como as palavras são vazias e necessitam de vida para preenchê-las, ela parece em nosso contexto, no mínimo, como uma sugestão ao totalitarismo racional no qual vivemos.
Ora, dentro da idéia exposta acima – de que a arte nos dias de hoje, por motivos tecnológicos, voltou a remeter ao uso de uma técnica – podemos entender que a palavra, dentro do livro em questão possui duas finalidades:
a) Ideológica – Uma vez que o termo arte, dentro de uma não-correspondência com o real, perdeu seus limites de definição, é possível utilizá-la numa relação com a palavra felicidade, apontando para um modo de viver, ou seja, um tipo de vida que, ao ser vivida, aponta para uma arte desenvolvida pelo que segue os conselhos do mestre tibetano. Viver bem, o que pode remeter a muitas coisas, mas, esse que escreve, sinceramente, não consegue atribuir critério estético algum a essa arte. Desse modo a palavra possui um caráter ideológico que esconde seu uso real dentro das relações sociais postas;
b) Totalitária – Essa arte, dentro do termo real, prático que a palavra possui nos dias de hoje, remete ao uso de uma técnica, a um método do bem-viver, a uma relação essencial que deve existir entre o homem e sua realidade. Essa técnica é totalitária porque não permite questionamentos: está implícita no modo de vida burguês, nas relações econômicas que a fundam e, principalmente, na relação que a sociedade estabelece com o mundo, dentro de seu isolamento da natureza.
Logo, a arte da felicidade nada mais é que um manual de como seguir o modo de vida autoritário da ordem idealizada dentro de uma razão dominadora. Para ser feliz o indivíduo deve interiorizar uma série de valores que são fundamentais para que sua “paz de espírito" seja garantida. Essa razão não se preocupa com a questão cultural ao utilizar um discurso pautado em uma realidade onde a relação entre homem e mundo possa lhe parecer estranha: a razão totalitária se apossa de qualquer credo, de qualquer discurso, com o intuito de transformá-lo em ajuda para que seu modo de vida ordenador possa ser garantido. Os livros de auto-ajuda são a prova disso: nem mesmo Maquiavel foi perdoado quando sua obra O Príncipe recebeu uma leitura dentro dessa proposta. A razão totalizadora é anacrônica e sem pudores: um texto sobre política torna-se uma manual para a vida, um pensamento pautado numa cultura oriental pode, muito bem, ajudar na tarefa de socorrer os depressivos em potencial.
Longe de ser um manual para a felicidade, o livro em questão não deixa de remeter a uma arte. Essa arte não deixa de apontar, assim como na arte antiga, à essências e formas ideais. Contudo, mais uma vez podemos observar o caráter histórico das próprias idéias – que podem ser entendidas como palavras silenciosas em nosso pensar – quando observamos que essas essências remetem ao mito moderno da razão, criando uma realidade onde as causas e efeitos são tidos como necessários, como uma expressão matemática sufocante e autoritária.
Os guias para uma vida feliz e plena dentro de uma realidade caótica, sufocante e sem referências, enquadram-se dentro de uma das mais cruéis faces da indústria cultural, a saber, aquela que se disfarça de esperança, quando na verdade busca, ao invés de negar a realidade angustiante, afirmá-la com mórbida sutileza.

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