7.9.09

Os descolados e os arcaicos

No último final de semana, numa reunião de amigos em Santo André, num bar que costuma reunir a porção adolescente da cidade que, a princípio, parece ser mais “descolada” em relação aos jovens que costumam assistir ao enlatado global Malhação ou ler a revistas como a Capricho, enquanto ainda comemorávamos a vitória da seleção brasileira sobre a rival Argentina, em determinado momento, discutíamos sobre a relação que alguns filósofos possuem com seu tempo histórico. Não lembro exatamente o que nos levou ao tema da conversa, mas lembro que, talvez ainda sob o efeito entorpecente do futebol (pois creio que o álcool não causaria isso), preferi ficar longe de tal discussão, ou talvez por temer o tom impositivo de meu amigo e ex-companheiro de Woodstock (antiga república existente no tempo em que estudávamos na Fundação Santo André), Luiz Henrique, que sempre envolve-se muito mais profundamente nas discussões que qualquer um de nós, causando certa intimidação (devido a seu tom de voz e até mesmo expressão corporal) em quem tenta ir contra seus argumentos. O que lembro, e o que ficou em minha mente, fazendo-me lembrar da idéia no dia seguinte, foi o argumento surgido, e defendido por muitos, de que certos filósofos cuja qualidade destacada muitas vezes faz referência ao fato de estarem “a frente de seu tempo”, na verdade aponta para um juízo equivocado sobre suas idéias e sobre a interpretação do que vem a ser alguém a frente de seu tempo.

A idéia levantada, não sei por quem, contrapõe a noção de estar “a frente de seu tempo”, afirmando que, na verdade, esses pensadores não estão a frente de nada, mas sim imersos de tal modo em seus tempos que produziram idéias e noções que refletiam com maior veracidade a realidade objetiva na qual se encontravam. Talvez possa ser dito (não sei se a linha da discussão apontava para isso, pois prestei porcamente atenção na conversa) que idéias a frente de seu tempo não são possíveis, pois mesmo os idealismos que, em forma de ideologia (na sua noção marxista), mascaram a realidade objetiva, são frutos de uma “sedimentação social” (roubando o termo adorniano). Desse modo não há possibilidades reais de que se produza algum pensamento que não esteja preso a seu tempo e espaço físico, mesmo se tratando de um idealismo que procure ocultar essa realidade objetiva, pois até mesmo para isso precisa de tal realidade para ser ocultada.

Os descolados e os arcaicos

Já a algumas semanas venho acompanhando um programa da emissora MTV chamado Descolados. Trata-se de um seriado, publicitariamente falando, voltado para um público, acredito, na faixa etária de 18 até uns 25 anos (faixa a qual eu me encontro em relação de exterioridade, caso levemos em consideração unicamente o tempo físico), que tem como personagens principais três jovens (incluídos nesta faixa etária) que, por uma série de acontecimentos que os leva a conhecerem-se, decidem dividir um apartamento no centro de São Paulo. O que me chama atenção neste programa é a forma como o comportamento e a própria cidade de São Paulo, bem como a relação que os personagens possuem em relação a ela, são expostos de modo a, juntamente com outros aspectos não observados racionalmente, mas intuídos por mim, formarem um “projeto” (não sei se esse seria o termo correto) de criação de uma “estética paulistana”, uma certa identidade espiritual que busque divulgar e ampliar, para uma certa faixa da porção jovem da sociedade, um conjunto de hábitos de consumo, (a)morais e linguísticos encontrados, atualmente, numa parcela menor desta mesma porção da sociedade. Além de divulgação e ampliação, o caráter aqui também é de afirmação.

No seriado da MTV temas como sexualidade, drogas (incluindo álcool), estrangeirismos, relações familiares não são tratados ou discutidos no enredo de seus episódios. Estes temas são simplesmente vividos pelos personagens, sugando o espectador para dentro da realidade da trama, sem colocá-lo como aquele que deve entrar dentro de uma discussão acerca das possíveis polêmicas envolvidas a partir de alguma regra moral vigente. A linguagem do seriado não apega-se ao formato de programas globais (da Rede Globo de Televisão) que parecem colocar os mesmos temas, de modo frequente, dentro de uma discussão na qual o personagem, em crise, parece viver uma situação em que se deve tomar partido desta ou daquela decisão que será determinante para sua vida: assumir ou não sua sexualidade, seus vícios, suas relações sociais.

os descolados

Não sei bem o que pensar destas diferenças aqui colocadas de modo muito vago. Talvez possa-se apontar, de modo indutivo, que a MTV representa as opiniões de um grupo (situado na cidade de São Paulo) que se opõe aos moralismos de um grupo maior (situado na cidade do Rio de Janeiro): talvez acreditar que a indústria cultural conseguiu unificar o pensamento de cada região, de modo a nivelar o modo de pensar dos grupos, apagando definitivamente seus respectivos desmembramentos históricos, seja pura ingenuidade ou debilidade crítica. Mas se observamos bem a realidade a nossa volta, talvez possamos identificar exatamente qual emissora consegue refletir, a sua maneira, as relações sociais entre os jovens de modo mais veraz.

Creio que a MTV não fala para as massas. A emissora, filial da norte-americana, fundada no Brasil em meados do início dos anos 90, sempre falou para uma minoria de espectadores. Sempre presa aos pacotes oferecidos pelas tevês por assinatura ou ao formato de frequencia conhecido como UHF, a MTV sempre entrou numa quantidade reduzida de lares em todo país. Não há como negar que, na segunda metade dos anos 90, a emissora passava por uma reestruturação em seu conteúdo, abrindo-se para músicas mais populares (pagode, axé), mas por algum motivo, e creio que pela própria fidelidade dos espectadores que pertencem à faixa dos “descolados”, ela teve que dar um “passo atrás” no seu projeto de popularização. A MTV não deixara de expandir-se, mas, curiosamente, sua expansão dava-se dentro da representação do modo de vida da parcela da sociedade que a financiava e dava credibilidade. A MTV nasceu descolada, tentou negar sua origem, mas foi pressionada por sua própria ontologia. A ideologia que a alimentou (e que ela alimentava) parecia imanente a sua existência. A MTV mudou, mas nunca conseguiu de fato desligar-se dessa característica.

O que vemos hoje é uma emissora que afirmou-se dentro de sua característica imanente (não posso apontar exatamente o que a levou a, enfim, afirmar-se dentro desta característica, devendo me prender a meus argumentos redutivistas). Suas produções sempre parecem existir a parte das demais produções televisivas encontradas nas demais emissoras. Mesmo na utilização de formatos já existentes (por exemplo, o formato de programa esportivo), a emissora paulistana parece trazer suas produções para um modo de vida peculiar. Mas algo me faz acreditar que, após anos de existência, a emissora afirma, como nunca, sua forma através do seriado Descolados. Não porque seja polêmica (ela já o foi mais ao defender, embora de modo discreto, campanhas pelo voto nulo nas últimas eleições), nem por ter uma linguagem de vanguarda (pois é perfeitamente compreensível, dentro de idéias pré-concebidas de mercado, tal produção), mas justamente por negar-se a entrar em discussões de cunho moral pequeno-burguês. A MTV, talvez possa-se dizer (e sei o risco de dizer isto), promove a etapa posterior ao choque entre o moralismo hipócrita global e o modo de vida de uma parcela do país que encontra-se totalmente dominada pela cultura globalizada.

A cidade de São Paulo, acredito, é a cidade que tem como identidade paradoxal a sua própria falta de identidade. O poder de consumo de parte de sua população (sei que, em muitos aspectos, é uma minoria, mas uma minoria influente) é o poder de atrair para seus domínios tudo o que a transforma na cidade cosmopolita, no olho do furacão globalizante em nosso país. São Paulo é a cidade sem fronteiras, é a porta de entrada para os estrangeirismos temidos no passado (anos 60) mas presentes, sem resistência, atualmente.

A emissora paulistana é feita por gente que se encontra neste olho do furacão, nasceu justamente para promover este movimento, como realização da indústria que alimenta, devido a interesses econômicos, a produção cultural globalizada. Mas o mais importante, ao olhar para ela, é compreender o debate cultural que pode surgir a partir da disparidade entre suas produções e as produções da Rede Globo de Televisão, há anos a maior emissora do país. A parcela pequena da sociedade que cresceu assistindo a MTV é a mesma que cresceu sabendo que a Rede Globo é a emissora que domina todos os índices de audiência na televisão brasileira, é a parcela da sociedade que foi influenciada pela emissora carioca, mas, em contrapartida, também deixou-se influenciar e influenciou a forma da emissora paulistana. O momento do “passo atrás” que a MTV promoveu, na segunda metade dos anos 90, foi essencial para fazer com que grande parte de sua audiência rompesse com os estereótipos globais e aderissem, agora definitivamente, com os seus estereótipos. A geração de descolados estava formada, a decisão consistia em escolher entre Malhação ou Vinte e Poucos Anos (diga-se de passagem, primeiro reality show produzido no país), entre muitas discussões morais, já objetivamente superadas, da emissora carioca ou a afirmação de um modo de vida que refletia, muito mais fielmente, o modo de vida da classe média paulistana e, por que não dizer, brasileira. Talvez, no início do seu “passo atrás”, a MTV ainda carregasse o isolamento de influenciar pouquíssimos lares, mas a emissora não pretende ser de massas, não pretende atingir, a qualquer custo, altíssimos índices de audiência. A MTV, mais do que um fenômeno televisivo que procura influenciar toda e qualquer classe a qualquer custo, é uma emissora que se apega a um projeto de país que desenvolve-se a partir do ingresso, por parte da população, num certo grau de poder de consumo e, mais ainda, a perda de um certo arcaísmo cultural que ainda pode ser observado, mas é menos observado nos jovens da classe média paulistana. Falo de uma classe que cresceu ouvindo rock alternativo dos anos 90 (embrião do que hoje se chama noise music e que rompe com formas e conteúdos viciados da música vendida pela indústria cultural), que aprendeu a rir do sentimentalismo das novelas, que não mais via em apresentadores como Serginho Groisman a representação de sua juventude. A MTV teve como papel fundamental a denúncia de formatos e estereótipos viciados de um Brasil que, talvez ainda e tardiamente, de forma embrionária, já adquire comportamentos que não mais refletem-se nas telenovelas, mas são unicamente negados por elas em forma de uma ideologia que já iniciou, há algum tempo, seu processo de desgaste.

O paradoxo global

A juventude que rompeu com as formas mais arcaicas e rendeu-se aos estereótipos da MTV é, paradoxalmente, fruto da própria Rede Globo. A emissora carioca que, nos anos 60, fez acordos com a ditadura militar e ajudou a promover, ao longo da história, a alienação política e a falta de experiência histórica mais objetiva e consciente da população brasileira, dos pais e avós da “geração MTV”, criou, no país, a falta de apetite pela própria cultura que pudesse remeter a qualquer aspecto mais veraz do que acontecia no país. A atenção das pessoas deveria voltar-se para o que acontecia fora do Brasil, para toda manifestação cultural que apontasse para uma “sofisticação” não encontrada em nossos territtórios. Os pais e avós da geração MTV aprenderam a amar o que vinha de fora, mas ainda encontravam identidade com aquilo que a Rede Globo produzia. O problema para a emissora carioca é que o movimento que ela defendeu, gerações atrás, agora adquire a posição de pólo oposto. O nacionalismo da Rede Globo (que sempre foi o nacionalismo da mentira) nunca defendeu valores culturais brasileiros (seja lá o que isso queira significar). O nacionalismo da Rede Globo, ao ocultar o próprio país através do culto aos estrangeirismos, sempre teve com projeto a modelação do país por meio de suas aberturas culturais, mas sempre mantendo sob controle o comportamento social surgido a partir de tais aberturas: a ideologia das novelas é a imagem do país que a Rede Globo construiu por muito tempo e espera continuar construindo. De modernizante a emissora de Roberto Marinho transformou-se na imagem (se não do retrocesso) da estagnação cultural de nosso país. Sua antítese mais objetiva, a MTV, é a prova de que suas formas lutam contra o próprio progresso econômico de uma classe que se encontra no olho do furacão do sistema econômico, na cidade mais rica e economicamente influente do país. A luta silenciosa travada pela Rede Globo, a favor de seu arcaísmo, pode ser observada na exaltação do Rio de Janeiro, seja nas novelas de Manoel Carlos, seja nos humorísticos Toma Lá da Cá ou no enlatado adolescente, já citado, Malhação.

os arcaicos

Não se trata de defender a MTV nem mesmo de exaltar suas manifestações de forma isolada. Trata-se de identificar, dentro das relações de poder entre os meios de comunicação, no que consiste sua postura, o que representa o fato de que os personagens de Descolados não possuem nenhuma crise moral no fato de possuírem diversos parceiros sexuais ou de romperem com estruturas familiares convencionais. A emissora paulistana coloca a frente de seus espectadores a geração apolítica, que consome vorazmente o rock filho (mais digerível, é claro) do rock alternativo dos anos 90 (destaco que o expoente musical da mencionada "estética paulistana" é a banda, amplamente divulgada pela MTV, Cansei de Ser Sexy), que não se choca com palavrões nos programas de televisão, que valoriza (paradoxalmente) mais a internet que a própria televisão. A MTV, juntamente com seus espectadores, cultua a internet e não nega seu crescimento: coloca parte de sua programação exclusivamente na rede e, na televisão, trata de apenas divulgar este conteúdo exclusivo, afirmando sua preocupação em manter restrito seu grupo de adeptos, uma vez que a internet no país ainda é acessada por uma minoria. Mas que minoria? A minoria que faz a MTV e, em grande parte (aqui pode-se dizer), que assiste a ela.

Mas o que isso tem a ver com a conversa que meus amigos tiveram no bar em Santo André? O bar ao qual me refiro, e como já mencionei, é o ponto de encontro de uma juventude mais descolada da cidade do ABC paulista, região conhecida pelo alto índice de indústrias (em grande parte automobilísticas) e por, devido a grande concentração de operários, frutos da alta industrialização, engendrar, nos anos 80, as grandes agitações políticas desta classe que reivindicava seus direitos trabalhistas. Mas o ABC paulista não é o mesmo. Ele também sofreu a lavagem que a Rede Globo ajudou a produzir e, embora com mais resistência, caiu nas graças do "País Global". Em relação à cidade de São Paulo a região do ABC paulista ainda é uma periferia das manifestações culturais da geração MTV (o bar em Santo André ao qual me refiro não seria tão descolado assim se estivesse situado na Rua Augusta, na cidade de São Paulo), mas já possui, em locais ainda muito isolados, grupos de jovens que já fazem parte do rompimento promovido pela escolha entre a novela da emissora carioca ou o descolamento da emissora paulistana. No dia seguinte ao encontro com meus amigos, no bar que reúne essa parcela da juventude do ABC, onde vi em poucos a empolgação pela vitória brasileira frente à seleção argentina, não pude deixar de pensar na possível dialética ali presente. A juventude entregue ao descolamento nem mesmo empolga-se com um símbolo nacional tão forte como o futebol, parece, a princípio, indiferente aos modismos da novela das oito (ou nove?), parece estar vivendo em outro país, diferente daquele que meus pais ou referências mais velhas vivem. A geração MTV parece estar a frente de seu tempo, mas apenas parece, e aqui o argumento da conversa nos salva de cair em tal interpretação.

A geração MTV está mais presa a seu tempo que a geração Malhação; a geração MTV representa aquilo que a crescente classe média brasileira está se tornando. As relações sociais promovidas pelo capital estão muito mais próximas da aparente amoralidade exposta pelas produções da emissora paulistana do que pela emissora carioca. As discussões colocadas pela Rede Globo de Televisão (discussões já resolvidas pelas suas produções, mas que sempre procuram dar a seus espectadores a sensação de que há de fato uma reflexão, uma liberdade de pensamento) não ocupam objetivamente uma sociedade que já vive, sem refletir, assim como os personagens descolados da trama da MTV, os novos valores do processo plantado, e agora fora de controle, da própria Rede Globo de Televisão. A juventude apenas manifesta de modo mais espontâneo aquilo que seus pais ainda insistem em esconder de si mesmos, refugiando-se nas novelas da emissora carioca.

Não há vanguarda sem crítica

Mas tomemos cuidado com a comparação. Estar a frente de seu tempo, que como vimos aponta para o fato de, na verdade, reconhecer melhor seu próprio tempo, nem sempre é manifestação crítica do presente. O que coloco como positivo neste tipo de manifestação cultural aqui abordada (talvez de forma um pouco confusa) é que ela oferece material para a crítica da sociedade. Em um tempo em que a televisão ocupa grande parte dos lares brasileiros, compreender as relações políticas e culturais existentes entre seus produtos torna-se grande janela para tentar compreender o modo de vida de nossa sociedade. Nos anos 60 o Tropicalismo, enquanto fenômeno estético, soube muito bem lidar com estes produtos e apresentá-los dentro de sua imanente dialética. Compreender o que há de arcaico e moderno, abstraído de seu tempo e preso a ele, manifesta-se como um estar a frente mais consciente do que qualquer outro: ele não se reconhece como síntese que necessita de objetivação (pois antes parece surgir em forma de idéia), mas sim como manifestação objetiva da tensão, ou melhor dizendo, como a própria tensão entre os dois pólos. Se existe algum grupo de artistas ou pensadores de qualquer tipo que, nos dias de hoje, procurem se manifestar, na arte ou na produção intelectual, no que se chamaria aqui de vanguarda (manifestação mais fiel da tensão do real), faz-se necessário que reflexões que partam da sedimentação social (mais uma vez utilizando o termo adorniano), do material das manifestações culturais de nossa realidade não deixe de ser algo buscado. Talvez possamos dizer que, assim como os Tropicalistas no final dos anos 60, este grupo de artistas ou pensadores sejam, de fato, os verdadeiros descolados da sociedade, embora conscientemente presos a ela, de modo animadoramente paradoxal.

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