28.3.10

O Poder e a Caridade


Há quem diga que a caridade proporciona segurança a todos aqueles que se beneficiam das desigualdades sociais. Há quem diga que a crença na multiplicidade das existências legitima a existência destas mesmas desigualdades. Mas não poderíamos pensar que, na verdade, é a existência das desigualdades que legitima a necessidade da multiplicidade das existências?

A deficiência moral em que se encontra a humanidade é máquina geradora de toda desigualdade e injustiça encontradas em nosso orbe terrestre. E qual seria o combustível que alimenta a ação dos inescrupulosos senão o seu próprio egoísmo, avareza e falta de amor? E seria esse sentimento mesquinho exclusividade apenas destes homens em suas posições sociais materialmente superiores ou seria também encontrada entre aqueles que padecem de dificuldades ligadas ao dinheiro?

Ora, a deficiência moral é doença que não reconhece a posse ou a falta da riqueza material. As paixões nocivas ao indivíduo, que exteriorizam-se no seu trato aos semelhantes, são comuns a todos os homens e não exclusividade dos poderosos. Para compreender tal afirmativa não é preciso ir muito longe, mas parar por apenas um minuto e olhar para dentro de si mesmo. Quantos são os pensamentos mesquinhos que acolhemos em nossa mente? Quantas as atitudes que, em muitos momentos, revelaram-nos como seres totalmente estranhos ao ideal de sociedade que sonhamos? Quando paramos, por um instante, para pensar no quanto nos assemelhamos, em pensamentos e atitudes, a todos aqueles que nos colocamos a criticar tão severamente, começamos a compreender que, para construir uma nova sociedade, não bastaria retirar do poder estes indivíduos, pois isso não significaria que estes seriam substituídos por outros de moral mais elevada ou atitudes mais nobres.

Se a base de uma sociedade justa é a compreensão do que significa, na prática, o bem e a justiça, ao mesmo tempo é justo afirmar que esta compreensão passa pela consciência de que o mal feito ao semelhante também é o mal feito a nós mesmos. Isto vem a significar que  a mesma ignorância desta afirmação é comum aos homens de poder e também aqueles que são anônimos para as grandes massas. Caso os críticos dos poderosos compreendessem que o mal que fazem, em pensamento ou atitude, a todos aqueles que despertam neles antipatia ou raiva, tem a mesma raiz que o mal promovido pelos governantes inescrupulosos, tratariam logo de procurar sua reforma pessoal antes de desejarem tomar o controle da própria sociedade, ocupando o lugar dos homens atualmente no poder.

Cabe a nós, individualmente, encontrarmo-nos na tarefa diária da prática do bem e da justiça, transformando-nos moralmente para podermos ser dignos de criticar nossos semelhantes que encontram-se na mesma bancarrota moral que nós mesmos. Nesse momento, perceber o quanto esta reforma é tão difícil, por meio de sua prática, é o início da compreensão lógica e mais ampla da necessidade da pluralidade das existências para cumprimento de tão árduo dever. Ao mesmo tempo, aceitar esta lógica nos dá passividade e benevolência para que possamos aceitar, com sabedoria, o atraso moral de todos aqueles que ainda não iniciaram sua reforma pessoal em busca do bem e da justiça que um dia prevalecerão numa sociedade que tenha em seus membros a verdadeira prática de seus princípios. Tal passividade não significa aceitar o que é errado ou aquilo que se apresenta como antítese do bem e da justiça, mas, ao contrário, nos aponta o norte correto para agirmos em relação as maldades e injustiças do mundo. É assim que a caridade sai do juízo de inútil para aqueles que desejam mudar a sociedade com base no derramamento de sangue e lágrimas, passando a ocupar o posto de único caminho racional (no sentido legítimo da palavra) e viável para a construção de um mundo livre dos sofrimentos oriundos do egoísmo humano.

"A caridade é virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela, as outras não existem. Sem a caridade não existe esperança num futuro melhor, não existe interesse moral que nos guie" (O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 155, São Paulo: PETIT, 1997).

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