4.1.08

Cansaço e Ideologia

Cerca de 5 mil pessoas estavam presentes ontem, 3 de janeiro, ao ato do movimento Cansei, liderado pela OAB, ONG’s, associações e demais entidades. Mais uma vez, o que se observou, foi um desfile de reivindicações como “cansei de governo paralelo dos traficantes, do caos aéreo, crianças nas ruas, corrupção, bala perdida e empresários corruptores...”.

O principal alvo das manifestações foi o governo Lula. Placas com frases como “cansei do Lula” tornaram-se comuns nos atos do movimento da classe-média. O presidente é atacado sem grandes fundamentações, algo que cabe muito bem a uma classe que tem como único foco o consumo desenfreado de bens cada vez mais caros, além do entretenimento oriundo dos canais de TV a cabo e revistas semanais de famosos e suas vidas glamurosas.

Por que a classe-média reclama tanto do governo Lula? É bem certo que eles não sabem direito do que estão falando, mas podemos analisar qual ideologia os guiou até a Praça da Sé, além das condições materiais que fizeram com que tal ideologia surgisse. Vamos com calma...

O governo Lula busca, através de projetos populares como Bolsa-Família, ajudar as camadas mais pobres da sociedade, enquanto procura fazer o país crescer economicamente, de acordo com as regras do sistema capitalista. Isso consiste em trazer investimentos, colocar o Brasil na rota dos grandes empresários mundiais, fazer parte das decisões políticas globais, enfim, colocar o país na grande roda do capital. Como se trata de um governo populista, não quer perder o apoio das classes menos abastadas, desse modo, projetos sociais que ajudam estas classes, servem como um “cala a boca“ e para que estas pensem que se trata de um governo voltado para os pobres.

A classe-média assiste a tudo isso e sente-se incomodada. Por que? Porque enxerga nesse governo um descaso para com ela. Observa os defeitos de um Bolsa-Família e sente-se ofendida por dar seus impostos para tal projeto. Acha um absurdo ter que, através de seus impostos, sustentar outras classes que, em sua visão, apóia-se nestes projetos para sobreviver.

Tal pensamento é oriundo do velho liberalismo, onde cada cidadão deve, através de seus próprios esforços, buscar seu sucesso pessoal. É a velha fórmula de não dar o peixe, mas ensinar a pescá-lo. Tal ideologia vem de uma classe que procurava não o questionamento dos motivos de tal ou tal classe existir, mas sim a realização econômica através de suas capacidades. Desta forma temos o industrial, que é o mais capaz, mas também temos o trabalhador da indústria, que não possui a mesma capacidade de ascensão econômica que o seu patrão. Além disso, o liberalismo não apoiava a intervenção estatal na economia, pois as próprias dinâmicas de produção deveriam determiná-la. A ideologia surgida através de tais relações, ganhou fôlego após o crescimento da classe-média nos séculos XVIII e XIX. Segue como um câncer nas mentes podres da sociedade contemporânea.

Aqueles que organizaram o movimento Cansei, movidos por seus interesses materiais, carregam tal ideologia, mesmo que implicitamente. Aqueles artistas, figuras das colunas sociais ou pequenos empresários que aderiram ao movimento, sabem menos ainda acerca do que exponho aqui. Além dessa ideologia liberalista, carregam a fúria consumista de uma classe que nada mais busca que um “lugar ao céu”, onde os objetos de consumo são cada vez mais acessíveis, onde os altos muros de seus condomínios os protegem da canalha que ameaça sua qualidade de vida e seus bens materiais.

A entrega cega a uma ideologia surge no momento em que o homem não se enxerga como aquele que determina o seu pensamento através de suas ações. A alienação surge quando os homens invertem o movimento essencial da relação entre o racional e o real, passando a colocar as idéias como aquelas que determinam suas ações. O que observamos no movimento Cansei é exatamente essa relação, onde uma classe age cegamente dentro de uma ideologia, sem ao menos analisar o que o mundo real expõe de forma transparente, se visto fora dela.

A classe-média não enxerga que ao se opor ao governo Lula, não está lutando para a melhoria das condições de vida de sua classe. Prende-se a uma luta que, em essência, nada mais é que uma luta contra as classes mais pobres, menos abastadas e com pouco acesso ao mundo do consumo. Mas não pára por aí...

Defender o governo Lula seria a solução? Óbvio que não! A luta da classe-média, como foi dito, tem como fundo o ódio contra as classes mais pobres, mas apenas porque a classe-média pensa que está sendo prejudicada pelos programas sociais do governo. Pensa que o governo está dando o peixe ao invés de ensinar a pescá-lo. Enxerga no governo Lula, uma ameaça aos princípios que a levou ao status social na qual se encontra. O que temos aqui, em resumo, é uma criança mimada que não quer dar seu brinquedo velho ao menino pobre que toca à campainha pedindo alguma coisa.

A classe-média infantilizada não enxerga que é explorada assim como as classes mais pobres. Não enxerga que corre, corre, mas jamais alcançará seu céu do consumo. O céu do consumo jamais chegará pelo simples fato de que ele não deve chegar. A roda capitalista não pretende dar cabo do combustível que mantém sua economia em movimento.

O que se observa nesse momento, é uma espécie de heterogeinização das classes sociais dominadas. Quando um governo, em aparência, governa para uma determinada classe, as outras, por apenas enxergarem as aparências, sentem-se ofendidas, ameaçadas em suas posições. A revista Época, em alguma edição, chegou a declarar que a classe-média está estacionada, referindo-se ao crescimento econômico da mesma. Temos aqui uma demonstração clara de como esse governo, que aparentemente governa para os mais pobres, pode gerar momentos onde percebemos com mais facilidade as divisões entre as relações econômicas existentes nas classes dominadas. O movimento Cansei mostra uma classe-média mais abastada que aquela na qual, por exemplo, eu me encontro, e que se sente ameaçada e desprotegida dentro das suas relações econômicas, devido ao governo populista de Lula.

Especulando acerca desse cenário, posso arriscar que essa heterogeinização de classes pode gerar uma divisão ideológica entre as classes mais pobres e essa classe-média “cansada”. Embora vivam sob relações econômicas e de produção diferentes, essas classes basicamente possuem os mesmos anseios consumistas da sociedade capitalista, mas a heterogeinização pode surgir como diferença de consciência por parte das classes mais pobres, onde a ilusão de uma vida melhor, possa ser aos poucos desmistificada, devido a essa oposição de classes.

Especulações a parte, o que notamos através do movimento Cansei, é o efeito de um governo que busca fazer com que o país cresça economicamente, enquanto “dá o peixe a quem não sabe pescar”. Desse modo, os filhos mimados do liberalismo levantam-se e clamam por justiça.

O céu ameaçado quer voltar à sua estabilidade. Meio sem jeito, as massas de manobra das grifes buscam seu descanso do que entendem por injustiças sociais. A classe dominante observa tudo e sorri contente. A disputa aqui beira o ridículo, e assim como as guerras de tortas entre os palhaços no centro do picadeiro, vemos a canalha consumista levantar suas bandeiras vazias de ação. Nenhuma ameaça à vista, nenhuma fissura no navio do capital. Enquanto eles cansam, os poderosos permanecem cheios de fôlego!

10 comentários:

Anônimo disse...

é engraçado perceber como, em favor da economia, movimentos políticos tão diversos e distintos acabam sendo reduzidos em classes: baixa, média, alta... e suas posições em favor ou contra.
"tudo pela democracia!"

William Dubal disse...

Não entendi a relação com a democracia...

A questão das classes é oriunda de uma análise material das relações humanas. Creio que não há "rebaixamento" aqui.

Anônimo disse...

pois é, engraçado, porque como se analisam relações humanas de um ponto de vista material? não creio que seja de humanos que estão tratando aí...
e redução não é rebaixamento... é um resumo, e no caso quase uma censura. quem não é pobre, não faz parte da classe média, ou não é rico não é considerado politicamente.
a nossa democracia é futebol.

William Dubal disse...

Então, Zorro. As relações humanas encontram-se fora do homem. Não são o próprio homem. Falar do próprio homem, fora das suas relações sociais seria uma abstração que não nos ajudaria a analisar suas relações sociais.

Para se compreender o que o homem faz de si e como se realiza no mundo, devo analisar justamente suas relações, pois são essas que transformam sua vida.

A divisão em classes sociais é oriunda das relações econômicas e de produção, pois são decorrentes dessas. Também não me agrada essa divisão, mas é o que a realidade material nos mostra. Cabe ao homem modificá-la.

Espero ter esclarecido melhor a posição do texto.

Anônimo disse...

Continuo achando engraçado, irônico até, falar de "relações humanas" como se elas independessem do que é humano.
Quer um conselho pra modificar o que lhe mostra a realidade material? Um ótimo começo é tentar não classificar as pessoas assim.

Anônimo disse...

Qual é a minoria que não se incomoda com um governo populista? Os suicidas?

William Dubal disse...

1 - Eu já parto da comcepção de que o grande erro da humanidade, aquilo que faz o homem não se reconhecer é exatamente o fato de não perceber essas relações materiais. Entendo o que quer dizer quando me pede para não classificar o homem assim, mas de fato tenho uma concepção diferente para analisar a realidade.

2 - O governo populista não incomoda a muitas minorias, pelo contrário... Basta observar que no nordeste o governo Lula tem altíssimos índices de aprovação! Essa é a idéia!

P.S.: Que pseudônimos malucos...

Anônimo disse...

Que tipo de minoria é "o nordeste"? Consegue reconhecer como se dá aqui o mesmo tipo de generalização que eu critiquei antes?
Perceber (ou não) as relações materiais é uma coisa. Fazer uso delas como pressuposto em ações políticas é outra, completamente diferente.
Longe de mim querer te convencer a mudar as suas concepções de realidade, mas espero que tenha compreendido o que elas ignoram (ou o que se ignora por pensar assim).

William Dubal disse...

Me referi a eles como minoria no sentido político.

É exatamente isso que eu faço: tomo as relações materiais como pressupostos das ações políticas! A análise materialista propõe exatamente isso.

Eu sei que essa concepção materialista ignora - no sentido de excluir - algumas coisas, mas não há "acidente de percurso" nisso. Tudo faz parte de um método dialético que busca negar idealismos, enfim...

Bom, gostei desse debate. Comente mais vezes!

Anônimo disse...

Então, nunca mais falaremos em demagogia... é um termo gasto, anacrônico. Falaremos de produção e conservação de massas.
"Tudo pela democracia!"

Então, não era bem um debate. Gostei muito do seu texto, é muito instrutivo. Comentarei sempre que puder.