
Desde que comecei a estudar filosofia, percebo cada vez mais os ataques ao velho senso comum. À medida que os estudantes de filosofia distanciam-se do mundo, percebo seu desdém com este “monstro” que habita listas negras. Outro dia estava fuçando pelo famigerado Orkut - nada melhor para achar pérolas do senso comum -, pesquisando sobre comunidades relacionadas a este “monstro”. E não é que percebi que algumas vezes o próprio senso comum se odeia? O senso comum não tem amor próprio em certos momentos!
Explico citando o texto de apresentação de uma das comunidades visitadas:
“quem já não se perguntou como as pessoas conseguem ser tão sem cultura?elas olham coisas inúteis na TV e já acham q só pq está fazendo sucesso é bom!todas as músicas boas estão sendo esquecidas, para dar lugar à esses lixos, que as pessoas chamam de música.por isso, vcs, que acham q todas as músicas e coisas inúteis do mundo deveriam ser banidas, essa é a sua comunidade!e é importante colocar aqui tb, que não é só na música que acontece isso, infelizmente. é também na vida política das pessoas, e esta, não deixa de atingir a vida econômica tb. e tudo isso pq há bandos de "mentes fracas" q não tem inteligência o suficiente para formarem suas opiniões, e precisam ficar se guiando pelo o q uma medíocre emissora q gosta de mentes vazias para poder plantar o seu veneno nelas,fala.por isso, é hora de vc fazer algo, e não "ficar esperando acontecer", afinal, mesmo q pensamos q nossa opinião não vá resolver alguma coisa neste país perdido, não custa tentarmos”. (http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4142895)
Será que conseguiremos aumentar a auto-estima do senso comum? Vamos tentar utilizando alguns argumentos do texto acima:
Primeiro argumento do texto: quem possui senso comum não tem cultura.
O homem possui cultura, a menos que viva isolado, a menos que permaneça sem contato algum com costumes criados por determinada sociedade. Em momento algum, cultura é sinônimo de inteligência, a não ser para um julgamento oriundo do velho senso comum, que insiste em afirmar que alguém sem “cultura” é “ignorante” ou pouco conhecedor das “verdades do mundo”. A cultura, conjunto dos hábitos de uma sociedade, bebe em muitas fontes como a religião, a arte e também o senso comum. Alguém aí não tem cultura? Alguém aí não sabe o que é religião? Alguém aí nunca se deparou com arte? Alguém aí se acha fora do senso comum?
Segundo argumento do texto: a mídia gera arte inútil, e isso faz parte do senso comum.
É de praxe do senso comum dizer que algo é inútil, mas como vemos acima, não há uma fundamentação sobre o que é útil ou inútil. Não é de responsabilidade do senso comum conceituar as coisas e nem fundamentar suas afirmações. A música criticada aqui, juntamente a outros produtos da indústria cultural, é ruim, pois é inútil. As músicas boas, segundo o texto, estão sendo esquecidas, mas se o senso comum não sabe o que é útil, acho difícil que saiba o que é bom. Afinal, o que é música boa? Ainda sobre música, uma proposta: que todas as coisas inúteis sejam banidas. Mas é muita responsabilidade banir algo que nem ao menos se sabe o que é!
Terceiro argumento do texto: as mentes “fracas” e sem “inteligência” – oriundas do senso comum – não têm capacidade de gerar suas próprias opiniões. Tal situação se estende à vida política e econômica, prejudicando-as.
Sim, o desinteresse por estas duas esferas da vida social realmente é um problema. Através deste desestímulo promovido pelas classes dominantes, percebemos que os homens cada vez mais se encontram presos em amarras ideológicas. Neste ponto o texto mantém uma afirmação que pode ser sustentada, exceto pelo fato de afirmar que a “opinião” é algo de grande valor. A opinião, pode ser compreendida como uma afirmação que muda em todo momento, instável, que se encontra constantemente em conflito por não possuir argumentos sólidos. É normal, e faz parte do senso comum, achar que pessoas de opinião são “inteligentes”, mas será que um conhecimento razoável é gerado por uma simples opinião? Pode-se afirmar que sim ou não, mas de fato, tal afirmação requer uma investigação que passa longe do papel do senso comum e da simples opinião.
Sem maldades, o texto acima está carregado de juízos, alguns com certo fundamento “inconsciente”, outros sem conexão alguma entre seus sujeitos e predicados. Um texto que mistura tais características pode muito bem ser taxado de produto do senso comum. Chegamos ao ponto desejado. Pode o senso comum criticar a ele mesmo?
Creio que ao incumbir-se de tal tarefa, o senso comum busca algo fora de suas capacidades. O termo “senso comum” não foi nem ao menos criado por ele. Ao criar outros modos de conhecer o mundo, o homem pôde finalmente separar essas diversas formas umas das outras. É observando a forma como um cientista investiga o mundo que vemos, por exemplo, como o senso comum se diferencia da ciência. A partir dessas diferenças que podemos, finalmente, saber o que é senso comum, ciência, filosofia, entre outras formas de conhecimento. Restaram ao senso comum, as características descritas no início do texto, não cabendo a ele a tarefa de criticar-se. Mas calma! Também não cabe à ciência a tarefa de falar sobre sua utilidade, nem à religião criticar suas diversas crenças e nem mesmo a arte dizer o que é arte.
Ajudemos o senso comum! Não vejo uma forma de separar totalmente essas diversas formas de conhecimento. Não possuímos botões que acionam, ora uma, ora outra dessas formas. Nascemos e, assim como a humanidade, no início de nossas vidas, estabelecemos juízos imediatos, espontâneos. Recebemos, graças à comunicação, por exemplo, informações que nos levam ao conhecimento de outras formas de investigar o mundo, de conhecê-lo. Logo, temos o senso comum como um começo de ciência, onde este primeiro contato gera fundamentações que nos levam a afirmações cada vez mais sistemáticas acerca das coisas.
A crítica do senso comum pelo senso comum pode ser vista como um efeito de tempos onde a racionalidade é colocada como principal meio para o homem compreender a realidade. Explico: o mundo gerado por esse racionalismo exacerbado criou um estado de cientificismo. As ciências baseadas na matemática e na lógica formal, possuem grande destaque em nossa sociedade, mas têm como “sobra de senso comum” em seus tratados, o desprezo por tudo aquilo que não segue seus métodos. A ideologia dominante, por ser oriunda desse culto à razão, carrega fortemente esses traços e mantém entre os dominados esse ranço. O senso comum busca justamente, a exemplo do texto analisado, banir tudo aquilo que não possui serventia, que não é bom e nem útil. É o que a ciência busca fazer com tudo aquilo que não é ciência. É como ver o “sujo falando do mal-lavado”, afinal, como afirmar qual forma de conhecimento possui menos incertezas sobre a realidade?
Outra forma de auto-crítica do senso comum, é o fato deste atribuir a si a alienação por parte dos meios de comunicação de massa. Tal afirmação descuidada nega o fato de que existe uma ideologia que não é forma de conhecimento, mas de dominação. A ideologia, que busca meios de alienação, utiliza-se não só do senso comum, mas da ciência, da religião ou das artes, por exemplo. Afirmar que tal alienação é provocada pelo senso comum surge da ignorância sobre a real causa das amarras ideológicas da sociedade.
Quem fala mal do senso comum despreza grande parte da história do homem e nega sua própria vida. É como criticar um bebê por engatinhar, sem saber que um dia esse se tornará um grande maratonista. Mais ainda, quem fala mal do senso comum, utilizando-se de argumentos como os apresentados acima, demonstra estar preso a ele de forma incontestável.