1.5.08

A Razão da fome

"O Sonho da Razão Produz Monstros" - Goya

A tão comentada crise dos alimentos parece gerar discussões que estão longe de terminar. A tal escassez dos alimentos relaciona-se com diversos aspectos da economia. Não são poucos os motivos que acredita-se serem os responsáveis pela crise que já dizem estar tomando dimensões globais. Temos como alguns motivos da crise o aumento da população, o acesso aos alimentos por uma parcela cada vez maior da população mundial devido aos “tempos prósperos” vivenciados principalmente pelos países em desenvolvimento, a produção de biocombustíveis que estaria despertando um maior interesse em detrimento das práticas agrícolas alimentícias, o aumento cada vez maior do preço do petróleo, que acarretaria um aumento dos preços finais dos alimentos em decorrência da distribuição e produção desses.

Os países mais pobres, que não entraram na onda consumista dos países mais ricos, são os que sofreram primeiro com a crise. Em países como Indonésia, Haiti e Honduras já ocorrem insurreições populares em função da fome. Há de se compreender que nesses países, onde a alimentação básica depende dos alimentos que são extraídos diretamente da produção agrícola, e não das grandes empresas de alimentos industrializados, o castigo venha mais cedo. Com o aumento dos preços desses alimentos básicos, como os grãos, por exemplo, a população, que mal tinha dinheiro para bancar os preços antigos, deixa de ter o pouco acesso que tinha a esses alimentos.

Mas qual o problema central dessa crise? Existe o que a imprensa chama de “falta de alimentos”? Será que com o atual desenvolvimento das técnicas de cultivo, falta ao homem condições adequadas para que a população mundial se alimente adequadamente? Pode-se conceber que, com a existência de tantos produtos industrializados nas prateleiras dos supermercados, não exista o mais simples, ou seja, alimentos extraídos da própria terra?

Podemos dar a tais perguntas um ar de retórica, exceto com relação à primeira, mas isso apenas a princípio. O que gera a crise dos alimentos é simplesmente a alta dos seus preços. Por isso, e destaco novamente, os países pobres, que antes já encontravam extrema dificuldade em comprar alimentos com os preços antigos, agora, com os reajustes, não encontram mais possibilidade de comprá-los. Logo, temos a crise estourando inicialmente em países como Indonésia e Haiti, e só agora – podemos afirmar isso em decorrência da exposição na mídia – o problema chegou aos países ricos.

A pergunta mais simples e que poderia soar como a mais idiota seria: por que não se baixa os preços dos alimentos? Mas a pergunta mais simples é que está carregada de maior teor crítico.

O que promove a morte por inanição de milhares de pessoas em todo o mundo é simplesmente a alta dos alimentos. Pode-se pensar em questões morais, como, por exemplo, dizer que os capitalistas são inescrupulosos e sem humanidade alguma por preferirem aumentar os preços dos alimentos a deixá-los mais baixos e evitar um genocídio alimentar. Mas penso que categorias morais aqui não chegam até a raiz da questão, não remetem à realidade de forma crítica.

Os aumentos nos preços dos alimentos, como tudo no sistema capitalista, seguem uma determinada ordem. Mas qual é essa ordem? A ordem colocada aqui é a ordem do mercado financeiro que, entre outras leis, coloca a oferta e a procura como uma de suas reguladoras. Podemos citar muitas outras leis que um economista colocaria aqui com muito mais propriedades que eu, mas apeguemo-nos à idéia geral da proposição colocada: o aumento dos preços dos alimentos segue as leis do mercado financeiro.

Quem controla as leis do mercado financeiro? O homem? Vejamos isso. Quem controla a previsão do tempo? O homem? Sim. Mas quem controla o tempo? O homem? De forma alguma. Pensar que o homem pode controlar o tempo é o mesmo que pensar que o homem, em seu atual estágio de entrega às leis organizadoras do capital, pode controlar as leis do mercado financeiro. Mesmo que o homem burguês quisesse baixar os preços dos alimentos, ele não poderia. As leis que regem o mercado financeiro são fundamentais para que o sistema capitalista permaneça dentro de uma certa ordem, seguindo uma determinada estrutura. Chegamos ao ponto em que tais leis, tais regras de funcionamento do sistema financeiro, são tão fortes que não dependem mais da vontade dos homens para ordenarem o mundo. Elas criaram autonomia, como as leis da natureza que seguem seu curso sem que o homem possa fazer algo para modificá-las.

Mas como chegamos a tal ponto? Como uma lei criada pelo próprio homem ganha tal autonomia? A entrega total à razão, a necessidade de organizar o mundo através das ciências positivas, dos números, da racionalidade “neutra”, trouxeram o homem até aqui. O que podemos observar é como chegamos ao ponto de entrega do homem à racionalidade, tornando-a um mito tão grande, que nem mesmo o homem pode lutar contra ela. A razão, deus absoluto, regulador da vida humana, criador das ciências, trazendo a matemática como sua linguagem sagrada, criador das leis do mercado financeiro, é quem dita o destino do homem.

O que temos aqui é um estágio de alienação, inclusive da classe dominante, que não permite mais ao homem enxergar além de sua abstração do real. Simplesmente não existe, de acordo com a ideologia dominante, a possibilidade de simplesmente baixar os preços dos alimentos, pois isto iria contra uma lei universal e autônoma. É como ferver a água sem esperar que ela evapore, é como fazer fogo sem gerar calor. O mito aqui, assim como na antiguidade, busca na natureza suas características reguladoras da vida, invertendo a relação em seguida. A razão torna-se necessária e universal como o mundo natural ao qual ela está presa de modo inevitável. Nem mesmo o pensamento de que essa razão possa controlar e transformar a natureza o livrou de seu embaraço inicial. A razão, enquanto mito, possui status de místico.

O cogito cartesiano, potencializado pelo positivismo, nos entregou a um novo deus. Afirmar, assim como Marx, que o capitalismo traz em si os germes de sua própria destruição, coloca de forma negativa a mitificação da razão em seu estágio mais avançado. É reconhecer que a autonomia das leis criadas pela razão tem poder de vida e de morte. Talvez o erro de Marx tenha sido pensar que havia a possibilidade de fugir de um deus. Como lutar contra um mito estando sob suas leis de forma tão profunda? Pode a parcela racional da humanidade ir contra sua própria “natureza”? Não é só a classe dominante que se encontra sob o jugo da razão, de modo que surge a pergunta: basta observar as relações materiais para transformar o mundo sem ter que, para fazê-lo de forma crítica, fugir do jugo da razão?

A crise dos alimentos é um exemplo triste, mas perto de sua força geradora parece brincadeira. Os economistas, assim como os cientistas, tentarão sempre achar uma forma de controlar as leis naturais, tentando ao máximo promover a vida humana dentro das vontades de uma classe. As massas permanecerão aguardando, como uma criança que observa seu pai saindo para trabalhar pela manhã, sem imaginar o tom de sobrevivência que implica a ação de seu genitor. Pensar fora dessas relações é como pensar o nada. Talvez, assim como Heidegger, seja o momento de esperar pelo não-existente, pelo velado, já que o universo que possuímos no momento nada mais é que o reflexo de um deus implacável e frio.
Em tempo de explicar a contradição, o quadro de Francisco de Goya acima, cujo título é O Sonho da Razão Produz Monstros, é uma apologia ao lugar seguro que a razão nos traz, longe de monstros e fantasmas do mundo mítico. O sonho colocado pelo quadro é gerado por um sono desconhecedor da razão, mas nos tempos atuais, é essa razão que transforma-se em sono, sendo a nova geradora de monstros e fantasmas. Ironicamente o quadro de Goya vira-se contra sua intenção inicial, surgindo sua triste e faminta antítese.

5 comentários:

Elaine Cristina disse...

Nada como um bom feriado para fazer fluir as idéias... O texto ficou excelente e trouxe ao problema muito mais do que eu imaginaria.
O mercado financeiro é um monstro criado pelo próprio homem, a fim de organizar nosso modo vida, se tornou algo que fundamenta esse nosso modo de vida. Mas o mercado financeiro é apenas uma parcela do problema, talvez a mais gritante, a que nos incomoda mais pois é a que nós nos submetemos mais. De um modo mais profundo, o que deveria mudar era todo nosso modo de vida, e eu não falo do capitalismo, mesmo o fim esperado por Marx não resolveria o problema. O fim do apego ao racionalismo resolveria muita coisa, mas o que fazer se a razão é parte de nosso processo biológico? Assumi-la como um processo biológico e não como algo superorgânico. O próprio mercado financeiro se apresenta como algo superorgânico, acima de todas as relações, de todas as possibilidades e se fundamenta em outras leis inquestionáveis, a matemática, a estatística, a leis puramente racionais. Mas o homem não é um ser puramente racional, não deve se guiar apenas por leis assim.
Sobre a crise dos alimentos, essa é uma parcela tão pequena do esquema todo, e vê, uma parcela tão pequena que nos prejudica tanto, que nos atinge tanto. Mas o que importa toda essa crise se tem o caso da Isabella para falar? É incrível que quanto mais pensamos sobre o assunto, mais vemos por trás dele. É triste que muitos nem se dão ao trabalho de refletir um pouco. Sentimos o colapso, sofremos com ele e mesmo assim somos parte dele.
Seu texto me empolgou...

Beijos

Corrupt disse...

O Subcomandante Marcos diz que o Neo-liberalismo é a crise transformada em sistema, e acredito que seja por aí que o "bonde passa", pois o homem, com sua razão magnífica, imobiliza tudo a sua volta, esquecendo-se do movimento da vida e das coisas. Sendo assim, o resultado desta imobilização é uma sistematização descritiva de uma realidade imóvel, que não permite retrocesso, nem avanços fora daquilo que é programado, ou seja, há uma linha tênue que mantêm este "real" "dentro dos conformes", e o menor abalo leva todo este "sistema" a completa bancarrota.
Nem entraremos no mérito da prática positivista e do péssimo costume dos cientistas (naturais e sociais) de reduzir tudo aos números (seja matemática financeira ou probabilística).

Abraço!

***Ah! Sua vovó Olgária gosta do Goya. E parece que você deu uma pirada no livrinho dela. Tô errado?

rafael andolini disse...

vivo dizendo que o verdadeiro problema são aqueles homens com seus traseiros gordos comendo seus hamburgueres!
oh cheat!

William Dubal disse...

Elaine - A leitura através do termo "superorgânico" é diferente da colocada aqui, mas também coloca, em síntese, o problema exposto. A razão não é nada divino, mas parte do corpo. Foucault também diz muito...

Luiz - Minhas leituras bergsonianas corroboram sua exposição. Não sabia que a Olgária gosta de Goya. Coincidência!

Raffa- Pior que o Número Um é bom, mas... Pensando bem... Será que é mesmo?

Anônimo disse...

Não sei se o número um é tão bom como o Rafael diz,o umsignifica que ele está sozinho,isolado, e que portantonãoi há nada ao lado, como é possível dizer que este número é bom, não o é! Rafael!