A frase título foi dita pelo Alexandre, meu companheiro de entregas no Grupo da Sopa, ao observar a forma como um morador de rua agradecia pelo alimento recebido numa das noites de quinta-feira, na região do Ipiranga, na cidade de São Paulo.
É comum que, uma vez imersos numa realidade construída por valores capitalistas, extremamente voltados para a valorização do ter em detrimento do ser, mesmo fundados numa visão religiosa de mundo, consideremos inferior a posição de um irmão que se encontra em situação de pobreza extrema.
A interpretação que a lei da semeadura pode receber, a partir de uma visão perfeitamente compreensível por ser presa em seu tempo, é a de que o ser humano em miséria material está colhendo a semeadura de outrora. Talvez o abuso da riqueza em outros tempos ou ainda a avareza excessiva tenha sido a causa do efeito sofrido no presente. Não há dúvidas de que a lei da semeadura pode muito bem sustentar essas possibilidades, bem como não é impossível que isso tenha ocorrido, de fato, considerando a visão de mundo aqui exposta. Mesmo que não se acredite nesta visão, baseando-me numa visão puramente materialista, o que eu veria a minha frente no lugar do homem agradecendo a Deus pela talvez única refeição do dia? Veria um ser oprimido, um fruto da injustiça de uma sociedade que priva materialmente alguns homens para que a abundância supérflua possa constituir a vida de outros. A diferença de classe social salta aos olhos nesta visão de mundo, o que não vem a ser nenhum absurdo, caso consideremos também que a realidade é composta pela matéria e pela relação que as pessoas estabelecem ao seu redor no mundo em que vivemos.
Alguns ainda podem simplesmente ter pena, outros podem ter raiva do mundo que permite que a pobreza exista, outros ainda podem achar que tudo é justo, pois nada acontece sem a permissão de Deus. Mas o que todas essas visões podem ter em comum é o fato de que a visão material ainda sobressalte em relação à visão moral de mundo. Não há evidência imediata que me faça acreditar que o irmão que se encontra em falência material esteja em degrau inferior ao meu. As penas do mundo nada evidenciam o fato de que determinado espírito esteja moralmente abaixo de mim. Não é a pobreza, a doença ou a condição intelectual que determinam a superioridade real na qual se encontram as pessoas. Independente de ser um injustiçado, um oprimido ou um pagador de faltas passadas, o irmão em situação de pobreza extrema carrega consigo a coragem de passar por privações que talvez nós mesmos não conseguiríamos suportar sem o sério risco de encerrarmos a existência com a destruição de nossa própria vida por nós mesmos.
E qual de nós aguentaria um só dia vivendo dessa forma? Quem seria capaz de manter-se solidário com aqueles à sua volta que se encontrassem, assim como você, em situação de pobreza extrema sem rebelar-se contra tudo e contra todos? Quem resistiria à tentação de entregar-se às malhas dolorosas do suicídio para não ter que continuar vivendo sob a pena das privações materiais? Qual de nós teria força e coragem de lutar contra o opressor caso faltassem as forças para levantar-se e mendigar por um prato de comida ou um cobertor?
É comum também, e ainda se considerando a justificação histórica, que tomemos a tudo e a todos como nossos objetos de apreciação racional. Em um mundo que preza pela razão tal e qual um grego que prezava pelos seus deuses reguladores, é compreensível que um morador de rua seja objeto que corrobore teorias sobre conspirações acerca do sistema econômico, pensamentos religiosos ou preencha o egoísmo “justificado” de muitos. Porém, ao tomarmos um ser humano como dado, temos que ter o cuidado de não nos tornarmos o próprio dado, uma vez que, imersos na racionalidade dominante, muitas vezes acabamos por adquirir a neutralidade das equações matemáticas. A partir desse momento torna-se perfeitamente válida a possibilidade de adotarmos monstros como homens de valor e santos como o lixo humano. Um exemplo? O fato de que muitos tomem o próprio Jesus Cristo como bode expiatório das injustiças que são hoje cometidas por mentes egoístas que controlam a sociedade desigual de nossos tempos. Caso utilizada como forma de alienação, de acordo com os críticos do Messias, a religião prega a resignação ao invés da resistência. A partir daí torna-se muito fácil a manipulação de mentes que nada querem a não ser seu lugar no reino dos céus. Ora, não nos limitemos ao pensamento daqueles que tentam nos dominar para que não nos tornemos objeto cego de nós mesmos. Ao olharmos o exemplo do Cristo pela utilização distorcida da religião, deixamos de olhar, mais uma vez, a história pelo viés moral e nos deixamos levar pela influência unilateral de nossos próprios defeitos (pois deixar a moral de lado, muitas vezes representa nossa própria necessidade de fechar os olhos frente a nossos defeitos mais repugnantes, aliás, aqueles mesmos defeitos que tanto gostamos de apontar nas pessoas a nossa volta). Logo, o que se deixa de observar é que, muito mais do que representar manipulação, o Cristo representa exemplo impecável da humanidade tão defendida pelos críticos das injustiças sociais.
A visão extremamente material de mundo, aliada à racionalidade que a tudo toma como objeto, pode ser, a partir do que foi aqui colocado, parte do que constitui o esquecimento do campo moral na análise da realidade. Voltando ao exemplo do morador de rua apresentado, o simples fato de um homem agradecer a Deus por uma refeição mais do que outro em toda sua vida pode representar, mais do que alienação, o exemplo vivo de humildade e força que talvez nenhum revolucionário apoiado em suas bandeiras ou que um religioso preso a seu templo possua em toda sua existência. A resignação, mais do que nos transformar em fracos, nos preenche de forças para que mantenhamos a integridade que, em toda historia da humanidade, encontramos em pouquíssimos homens, independente de seus belos discursos de luta de classes ou de salvação pela adoração no culto externo de divindades. Defender a humanidade significa, mais do que proferir discursos e levantar bandeiras, compreender o que em nós existe de mais humano e o que em nós necessita ser expurgado, a fim de que não deixemos de nos tornar homens para nos tornar objetos de nossas próprias criticas sem que nós mesmos consigamos enxergar tal fato.
Nota: a frase que deu nome ao texto foi lembrada por mim no último sábado, em acontecimento muito semelhante. Não pude evitar dizer as mesmas palavras, lembrando do querido companheiro das noites de quinta. Apenas viver e sentir prova tudo aquilo que pode ser dito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário