27.6.09

O Amor e o Poder

Estudar fixamente algo pode nos fazer descobrir coisas muito engraçadas. Lembro que tinha uns 5 ou 6 anos quando a música “O Amor e o Poder”, interpretada pela desaparecida cantora Rosana, explodia nas paradas de sucesso da indústria cultural. A música é versão de uma música gringa, sua letra é de autoria de Cláudio Rabello e, se não me engano, foi tema de novela da Globo, coisa e tal. O que eu não esperava é que, mais de 20 anos depois, eu encontraria, na filosofia de Adorno e Horkheimer, uma interpretação para esta famigerada música dos anos 80. A letra desta música é pura referência à trajetória do esclarecimento e sua regressão ao mito, que decorre da busca pela dominação da natureza pela racionalidade instrumental. Quem presta atenção na letra pode, a partir desta interpretação, tentar entender melhor o núcleo argumentativo da obra Dialética do Esclarecimento, dos nossos filósofos de Frankfurt.

Senhoras e senhores, com vocês, "O Amor e o Poder":

A música na sombra,
o ritmo no ar

Sombra, música e ritmo. Aqui temos referência a uma natureza obscurecida pelo desconhecimento acerca de seus elementos. A música e o ritmo referem-se a uma forma mais intuitiva de lidar com a natureza, uma forma irracional que ainda não passava pelos critérios da razão ordenadora que se iniciaria posteriormente.

Um animal que ronda
no véu do luar

O "animal que ronda" também faz referência ao desconhecido, mas agora fala dos perigos que podem estar nesta realidade obscurecida. Ele alimenta o medo que o homem possui do desconhecido devido a seu instinto de sobrevivência, ele está em volta e remete ao momento em que o homem encontrava-se integrado ao natural, não havendo ainda a abstração mítica. A noite é colocada como oposta ao dia iluminado. Iluminado pelo que? Pelo esclarecimento. O “véu do luar” é a contraposição às luzes da razão.

Eu saio dos seus olhos
eu rolo pelo chão
Feito um amor que queima
magia negra
Sedução

O instinto de sobrevivência, ou o que Adorno e Horkheimer chamaram de autoconservação, é a "sedução" que leva o homem a iniciar a abstração da natureza. “Eu saio dos seus olhos, eu rolo pelo chão” é justamente o início da separação entre sujeito e objeto. A natureza “sai dos olhos”, não compõe mais, com o sujeito, uma síntese. Ela “rola pelo chão”. É o momento no qual o espaço físico, presente nesta passagem, começa a integrar os critérios racionais de apreensão da realidade – vide Kant. A magia é o meio, através do ritual, pelo qual o homem fez suas primeiras tentativas de controlar a natureza ao seu redor. Esta passagem completa expressa a confusão existente no processo de abstração da natureza que ainda se prendia aos rituais mágicos da antiguidade.

Como uma deusa
você me mantém
E as coisas que você me diz
Me levam além

O surgimento dos mitos! A natureza torna-se a deusa mantida pela linguagem. As coisas que o homem diz, as narrativas míticas levam o natural ao além (além mundo), caracterizando de forma determinante a abstração entre homem e mundo. A epopéia de Ulisses já trazia, na passagem do ciclope Polifemo, o início do logro das forças da natureza pela linguagem ambígua que, como vemos na música, pode levar a natureza ao além, mas também a outras realidades. Na abstração tudo é possível.

Aqui nesse lugar
Não há rainha ou rei
Há uma mulher e um homem
Trocando sonhos fora da lei

Temos aqui a realidade do natural. Homem e mulher representam, alegoricamente, a ambiguidade existente na relação entre ela e os homens. Os sistemas criados pelo homem, as hierarquias que se iniciaram nos mitos, as leis de uma racionalidade que se desdobraria até o esclarecimento estão sempre dentro desta ambiguidade. Neste “lugar” (a natureza, o mundo fora da abstração humana) não há espaço para sistemas ou hierarquias, “não há rainha ou rei”. Há dois opostos que se complementam, trocando “sonhos fora da lei”, ou seja, fora dos imperativos racionais, seja nos mitos ou no esclarecimento. Os sonhos remetem a tudo que não se enquadra no mundo organizado pelo discurso.

Tão perto das lendas,
tão longe do fim
A fim de dividir
no fundo do prazer
o amor e o poder

“Tão perto das lendas” é a regressão da razão ao mito. Dentro da abstração, a razão busca estabelecer-se como fim em si mesma em detrimento do natural, mas esse isolamento, ao ignorar o natural que encontra-se fora de seus critérios, ignora o irracional que é também o real. O esclarecimento está “longe do fim” que ele mesmo estipulou, ou seja, o fim em si mesmo que busca separar a afinidade (amor) com o natural dentro de uma relação de poder com ele. A dominação da natureza pelo esclarecimento busca dividir o prazer instintivo que não contribui, de acordo com ele, para o surgimento da civilização. O prazer precisa ser suprimido pela razão, dando origem ao reprimido freudiano. Deste modo, a razão do esclarecimento, ou seja, a razão instrumental que está, dentro de sua regressão ao mito, “tão perto das lendas”, também está longe de ser o fim em si mesma. Está “tão longe do fim”, mas não deixa de tentar dividir no “fundo do prazer”, ou seja, na relação imediata com o natural, o amor e o poder, a afinidade e a dominação.


Palmas para o Sr. Cláudio Rabello que, agora ficamos em dúvida, talvez tenha estudado as teorias de Adorno e Horkheimer. E palmas para a cantora Rosana! Por onde quer que ande...

19.6.09

Marginália II

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
________________Torquato Neto / Gilberto Gil

11.6.09

Não Identificado

Eu vou fazer
Uma canção pra ela
Uma canção singela
Brasileira
Para lançar depois do carnaval

Eu vou fazer
Um iê-iê-iê romântico
Um anticomputador sentimental

Eu vou fazer
Uma canção de amor
Para gravar num disco voador

Uma canção
Dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho
Apaixonado
Para lançar
No espaço sideral

Minha paixão
Há de brilhar na noite
No céu de uma cidade
Do interior
Como um objeto não identificado

Que ainda estou sozinho
Apaixonado
Como um objeto não identificado

______________Caetano Veloso