18.5.08

Carl Schmitt e a Amazônia


O The New York Times publicou nesse domingo uma reportagem com o título “De quem é esta floresta amazônica, afinal?”, onde coloca-se a posição de muitos líderes mundiais de que a Amazônia já não pode mais ser vista como patrimônio do povo brasileiro, mas sim um patrimônio mundial. O jornal até cita as palavras do ex-vice-presidente americano Al Gore que dizem que “ao contrário do que os brasileiros acreditam, a Amazônia não é propriedade deles, ela pertence a todos nós”.

O mínimo que se pode esperar de uma discussão como essa é que os ânimos em relação a ela permaneçam exaltados, que se olhe nos olhos daqueles que mantém a posição contrária à sua e procure identificar, exatamente, até que ponto o seu interlocutor irá defender sua opinião: se manter-se-á simplesmente no terreno da discussão, ou se levará a um enfrentamento que possa colocar um risco ontológico à posição oposta. Por que estou dizendo isso? Vejamos mais de perto...

Ao analisarmos o problema da Amazônia e toda relação que subjaz à questão sobre sua posse, observamos um problema de ordem política. Tal afirmação deve ser cuidadosamente sustentada por uma clareza de conceitos. O que é política, afinal? Desenvolveremos aqui um conceito colocado pelo pensador alemão Carl Schmitt.

Schmitt, em sua obra O Conceito do Político, define política como um conjunto de relações de poder entre indivíduos em um determinado espaço. Ao colocar dessa forma, Schmitt torna fundamental para a discussão sobre política, em nossos tempos, a discussão sobre o Estado e seu papel na política. Ao afirmar que a política é uma relação de poder dentro de um determinado espaço, observamos que não é possível falar de Estado sem falar de política, pois Estado pressupõe um território físico, cujas fronteiras delimitam sua ação e dos seus indivíduos constituintes. Logo, o Estado é um espaço político, e falar dele sem passar por essa esfera de relações torna-se uma tentativa que pode, por consequencia, gerar um esvaziamento do conceito do político. Vejamos agora o que esse equívoco pode acarretar.

O que podemos observar na discussão sobre a Amazônia é um questionamento acerca do direito de soberania do Brasil sobre uma parte de seu território. Schmitt coloca a soberania dos Estados como um grande indicador da forma de fazer política. O Estado é, segundo Schmitt, uma unidade política onde seus membros formam um bloco que deve definir exatamente quem são seus amigos e seus inimigos. Schmitt traz de Aristóteles os critérios para se dizer o que é ou não campo de ação política, pois Aristóteles dizia que “a amizade e a guerra são a origem de toda instituição e de toda destruição”. A partir disso, podemos dizer que o papel de toda unidade política, colocada na modernidade sob a roupagem de Estado, deve definir a amizade ou inimizade em relação às demais unidades políticas do planeta, ou seja, os critérios do político passam pela definição de amigo ou inimigo. A forma como o Brasil trata a questão da Amazônia indica sua forma de fazer política. Deve-se definir, exatamente, se trata-se de declarar como inimigos aqueles que ferem sua soberania, pois ao ferir sua soberania, temos um ataque claro a uma unidade política.

O que podemos observar nos dias de hoje, é um aumento do poder privado em relação ao poder estatal. O velho ideal liberal de individualismo e livre concorrência bate de frente com a unidade política estatal. As decisões do Estado não condizem com a liberdade individual, com o poder de decisão de cada indivíduo livre e autônomo. A unidade política, segundo o liberalismo, não respeita a liberdade. O que temos nos ideais liberais, é uma busca pelo poder de uma certa unidade – de interesses econômicos – em relação à propriedade pública do Estado. A grande preocupação dos liberais seria a possibilidade da propriedade privada ser colocada em risco pela propriedade estatal, ou seja, os poderes do Estado deveriam ser restritos a um pequeno número de funções, mais de ordem organizacional do que de um poder estabelecido. Somente com o enfraquecimento do poder estatal, os membros das idéias liberais teriam a segurança de manterem o direito à propriedade privada individual, para poderem concorrer entre si dentro do campo econômico.

Com o passar dos tempos, os ideais liberais foram ganhando território, o Estado foi enfraquecendo, e o que se observa é que, cada vez mais, seus poderes são deixados de lado em função dos interesses econômicos. A unidade política não deve mais sobressair-se em relação ao campo econômico. Todos os conceitos que surgem dentro dessa unidade como, por exemplo, democracia ou soberania são utilizados como mitos, pois seus conceitos remetem a idéias clássicas que não correspondem ao uso dessas palavras dados no modo de vida atual.

Dentro desse contexto, a discussão sobre a Amazônia ganha novo fôlego. O que temos é uma situação onde não haveria motivo algum para se discutir sobre a posse ou não de um determinado território, a não ser que esse território desperte interesses econômicos de outras unidades políticas. A soberania do Brasil e demais países da América do Sul, que possuem parte da floresta amazônica em seus territórios, apenas é respeitada enquanto há uma concordância entre os interesses dos territórios de maior domínio econômico. A soberania do Estado, colocada como pressuposto para autonomia de qualquer país, apenas existe enquanto corresponde a interesses de ordem econômica. A Amazônia pertence ao Brasil, não de acordo com sua soberania, mas de acordo com uma determinada situação econômica dada.

O esvaziamento do conceito do político cria um véu, onde as verdadeiras relações colocadas ficam fora do campo de observação dos indivíduos. O problema da soberania gera uma tensão, mas essa tensão é abstraída por discursos como o do ex-vice-presidente americano, que coloca a amazônia como um território com grande diversidade natural que poderia servir aos interesses de toda humanidade, e não só dos brasileiros. Tal discurso reflete a posição de uma sociedade que busca no domínio da natureza sua felicidade, mas também reflete que, em último caso, as relações políticas dadas podem até mesmo chegar a um estado de guerra onde, por algum motivo colocado de forma semelhante ao discurso de Al Gore, legitima-se um confronto armado. O que se diz sobre o confronto dos EUA com os países do Oriente Médio é que existe uma caçada ao terrorismo, mas por trás desse véu correm interesses econômicos pelos recursos naturais daquela região, a saber, o petróleo, bem tão valioso no capitalismo tardio.

A preocupação está justamente em não enxergar que, dentro desse jogo, as unidades políticas não deixam de existir. Mesmo em um tempo onde a esfera econômica toma as decisões, a relação entre amigos e inimigos permanece. O problema está no fato de que, ao não se enxergar tais relações, os discursos economicistas que mascaram a tensão entre as unidades políticas tornam-se eficientes e dominantes dos indivíduos. A política possui, segundo Schmitt, uma autonomia que independe das ações dos homens atualmente. A economia pode mascarar os fatos, mas o que está dado, está dado.

Como o Brasil encara os questionadores da Amazônia? Qual a posição por parte da unidade política colocada? Dada a situação em que nos encontramos, são unicamente os políticos do velho Estado que detém o poder dentro dessa unidade ou seriam também os defensores do domínio da esfera econômica?

É claro que as posições schmittianas acerca de política podem ser questionadas, mas sua análise torna-se eficiente quando as aplicamos ao uso das palavras dentro de nossa sociedade. Ao se enxergar as relações reais a partir dos critérios do campo político, percebemos como o uso de conceitos como o de soberania não passam de discurso manipulador, que sustentam uma superestrutura – tomando o termo de Marx – que permanece no domínio de uma unidade política. Voltando ao segundo parágrafo, trata-se de olhar nos olhos daquele que mantém um discurso, para enxergar, exatamente, qual seu status, ou seja, qual seu papel dentro dos critérios de amigo e inimigo. Não é questão de preferência ou de escolha, mas questão de sobrevivência, pois o que legitima uma guerra não passa pelo campo econômico, mas pelo campo político. Apenas na política se define quem é amigo ou inimigo em um pluriversum político, ou seja, motivo econômico nenhum justifica a morte de pessoas, a não ser o risco existencial possibilitado pelas relações políticas que pairam sobre qualquer esfera que venha a dominar as relações entre os Estados, sejam elas econômicas, religiosas, etc.

A discussão sobre a Amazônia está longe de ser uma discussão sobre o que é melhor para a humanidade, pois o termo humanidade deveria pressupor uma unidade política global. Tal unidade não existe, pois segundo Schmitt

quando um Estado luta contra seu inimigo em nome da humanidade, não se trata de uma guerra da humanidade e sim de uma guerra para a qual um determinado Estado procura ocupar um conceito universal frente ao seu inimigo, para – às custas do adversário – identificar-se com tal conceito, assim como se pode abusar de paz, justiça, progresso e civilização, para reivindicá-los para si e negar que existam no lado do inimigo [1]”.

O que podemos tirar de tal afirmação é que o interesse sobre a amazônia não é um interesse pelo bem da humanidade, mas sim pelo bem de uma determinada unidade política, e a discordância desse bem pode gerar uma tensão onde, em um caso extremo, poderemos ter uma situação de guerra. Toda relação amigo-inimigo deve pressupor uma guerra, pois negar tal fato seria negar as potencialidades dessa relação, tal como a vemos realizada ao longo da história. Não se trata de fazer apologia à guerra, mas de enxergar sua possibilidade e saber atuar a partir dessa visão. O risco ontológico por trás de uma discussão como a referente à floresta amazônica deve ser evidente. O Oriente Médio que o diga.
[1] Schmitt, Carl. O Conceito do Político. Trad. Alvaro L. M. Valls. RJ: Vozes, 1992.

1.5.08

A Razão da fome

"O Sonho da Razão Produz Monstros" - Goya

A tão comentada crise dos alimentos parece gerar discussões que estão longe de terminar. A tal escassez dos alimentos relaciona-se com diversos aspectos da economia. Não são poucos os motivos que acredita-se serem os responsáveis pela crise que já dizem estar tomando dimensões globais. Temos como alguns motivos da crise o aumento da população, o acesso aos alimentos por uma parcela cada vez maior da população mundial devido aos “tempos prósperos” vivenciados principalmente pelos países em desenvolvimento, a produção de biocombustíveis que estaria despertando um maior interesse em detrimento das práticas agrícolas alimentícias, o aumento cada vez maior do preço do petróleo, que acarretaria um aumento dos preços finais dos alimentos em decorrência da distribuição e produção desses.

Os países mais pobres, que não entraram na onda consumista dos países mais ricos, são os que sofreram primeiro com a crise. Em países como Indonésia, Haiti e Honduras já ocorrem insurreições populares em função da fome. Há de se compreender que nesses países, onde a alimentação básica depende dos alimentos que são extraídos diretamente da produção agrícola, e não das grandes empresas de alimentos industrializados, o castigo venha mais cedo. Com o aumento dos preços desses alimentos básicos, como os grãos, por exemplo, a população, que mal tinha dinheiro para bancar os preços antigos, deixa de ter o pouco acesso que tinha a esses alimentos.

Mas qual o problema central dessa crise? Existe o que a imprensa chama de “falta de alimentos”? Será que com o atual desenvolvimento das técnicas de cultivo, falta ao homem condições adequadas para que a população mundial se alimente adequadamente? Pode-se conceber que, com a existência de tantos produtos industrializados nas prateleiras dos supermercados, não exista o mais simples, ou seja, alimentos extraídos da própria terra?

Podemos dar a tais perguntas um ar de retórica, exceto com relação à primeira, mas isso apenas a princípio. O que gera a crise dos alimentos é simplesmente a alta dos seus preços. Por isso, e destaco novamente, os países pobres, que antes já encontravam extrema dificuldade em comprar alimentos com os preços antigos, agora, com os reajustes, não encontram mais possibilidade de comprá-los. Logo, temos a crise estourando inicialmente em países como Indonésia e Haiti, e só agora – podemos afirmar isso em decorrência da exposição na mídia – o problema chegou aos países ricos.

A pergunta mais simples e que poderia soar como a mais idiota seria: por que não se baixa os preços dos alimentos? Mas a pergunta mais simples é que está carregada de maior teor crítico.

O que promove a morte por inanição de milhares de pessoas em todo o mundo é simplesmente a alta dos alimentos. Pode-se pensar em questões morais, como, por exemplo, dizer que os capitalistas são inescrupulosos e sem humanidade alguma por preferirem aumentar os preços dos alimentos a deixá-los mais baixos e evitar um genocídio alimentar. Mas penso que categorias morais aqui não chegam até a raiz da questão, não remetem à realidade de forma crítica.

Os aumentos nos preços dos alimentos, como tudo no sistema capitalista, seguem uma determinada ordem. Mas qual é essa ordem? A ordem colocada aqui é a ordem do mercado financeiro que, entre outras leis, coloca a oferta e a procura como uma de suas reguladoras. Podemos citar muitas outras leis que um economista colocaria aqui com muito mais propriedades que eu, mas apeguemo-nos à idéia geral da proposição colocada: o aumento dos preços dos alimentos segue as leis do mercado financeiro.

Quem controla as leis do mercado financeiro? O homem? Vejamos isso. Quem controla a previsão do tempo? O homem? Sim. Mas quem controla o tempo? O homem? De forma alguma. Pensar que o homem pode controlar o tempo é o mesmo que pensar que o homem, em seu atual estágio de entrega às leis organizadoras do capital, pode controlar as leis do mercado financeiro. Mesmo que o homem burguês quisesse baixar os preços dos alimentos, ele não poderia. As leis que regem o mercado financeiro são fundamentais para que o sistema capitalista permaneça dentro de uma certa ordem, seguindo uma determinada estrutura. Chegamos ao ponto em que tais leis, tais regras de funcionamento do sistema financeiro, são tão fortes que não dependem mais da vontade dos homens para ordenarem o mundo. Elas criaram autonomia, como as leis da natureza que seguem seu curso sem que o homem possa fazer algo para modificá-las.

Mas como chegamos a tal ponto? Como uma lei criada pelo próprio homem ganha tal autonomia? A entrega total à razão, a necessidade de organizar o mundo através das ciências positivas, dos números, da racionalidade “neutra”, trouxeram o homem até aqui. O que podemos observar é como chegamos ao ponto de entrega do homem à racionalidade, tornando-a um mito tão grande, que nem mesmo o homem pode lutar contra ela. A razão, deus absoluto, regulador da vida humana, criador das ciências, trazendo a matemática como sua linguagem sagrada, criador das leis do mercado financeiro, é quem dita o destino do homem.

O que temos aqui é um estágio de alienação, inclusive da classe dominante, que não permite mais ao homem enxergar além de sua abstração do real. Simplesmente não existe, de acordo com a ideologia dominante, a possibilidade de simplesmente baixar os preços dos alimentos, pois isto iria contra uma lei universal e autônoma. É como ferver a água sem esperar que ela evapore, é como fazer fogo sem gerar calor. O mito aqui, assim como na antiguidade, busca na natureza suas características reguladoras da vida, invertendo a relação em seguida. A razão torna-se necessária e universal como o mundo natural ao qual ela está presa de modo inevitável. Nem mesmo o pensamento de que essa razão possa controlar e transformar a natureza o livrou de seu embaraço inicial. A razão, enquanto mito, possui status de místico.

O cogito cartesiano, potencializado pelo positivismo, nos entregou a um novo deus. Afirmar, assim como Marx, que o capitalismo traz em si os germes de sua própria destruição, coloca de forma negativa a mitificação da razão em seu estágio mais avançado. É reconhecer que a autonomia das leis criadas pela razão tem poder de vida e de morte. Talvez o erro de Marx tenha sido pensar que havia a possibilidade de fugir de um deus. Como lutar contra um mito estando sob suas leis de forma tão profunda? Pode a parcela racional da humanidade ir contra sua própria “natureza”? Não é só a classe dominante que se encontra sob o jugo da razão, de modo que surge a pergunta: basta observar as relações materiais para transformar o mundo sem ter que, para fazê-lo de forma crítica, fugir do jugo da razão?

A crise dos alimentos é um exemplo triste, mas perto de sua força geradora parece brincadeira. Os economistas, assim como os cientistas, tentarão sempre achar uma forma de controlar as leis naturais, tentando ao máximo promover a vida humana dentro das vontades de uma classe. As massas permanecerão aguardando, como uma criança que observa seu pai saindo para trabalhar pela manhã, sem imaginar o tom de sobrevivência que implica a ação de seu genitor. Pensar fora dessas relações é como pensar o nada. Talvez, assim como Heidegger, seja o momento de esperar pelo não-existente, pelo velado, já que o universo que possuímos no momento nada mais é que o reflexo de um deus implacável e frio.
Em tempo de explicar a contradição, o quadro de Francisco de Goya acima, cujo título é O Sonho da Razão Produz Monstros, é uma apologia ao lugar seguro que a razão nos traz, longe de monstros e fantasmas do mundo mítico. O sonho colocado pelo quadro é gerado por um sono desconhecedor da razão, mas nos tempos atuais, é essa razão que transforma-se em sono, sendo a nova geradora de monstros e fantasmas. Ironicamente o quadro de Goya vira-se contra sua intenção inicial, surgindo sua triste e faminta antítese.