13.4.08

Disfarçando a morte

A comoção tomou conta dos noticiários nas últimas semanas. A bola da vez é a morte misteriosa de Isabella Nardoni, uma menina de cinco anos que foi supostamente espancada e em seguida jogada da janela do sexto andar de um prédio onde residem seu pai e madrasta. Não se fala de outra coisa, não se respira nada além do ar pesado da necrofilia social gerada pelos meios de comunicação. O que isso quer dizer? Vejamos...

O caso da menina Isabella evidencia de forma deprimente o papel da comunicação de massas na sociedade do capitalismo tardio, a saber, entreter o seu espectador escondendo esse fato na sua forma positiva enganadora que a transforma em veículo de informação. Por esse motivo chamamos os jornais, telejornais e revistas, de meios de comunicação informativos, que nos colocam em contato com os principais acontecimentos de forma neutra e responsável. Eis o exemplo de como esses meios de comunicação conseguiram, ao longo de sua existência, ganhar espaço na sociedade, conquistando credibilidade, permanecendo acima de qualquer suspeita e ganhando status de “quarto poder”.

Insisto na vida que se tornou cinema, e no amanhã que se transformou em “cenas dos próximos capítulos”. O que a comunicação de massas faz não ultrapassa nem em um milímetro essa vida. O que podemos observar na exploração de casos como o da morte da menina Isabella é como essa comunicação transforma em espetáculo tudo o que achar conveniente a seus interesses. O grande Midas dos nossos tempos transforma em ouro assassinatos, sequestros, invasões de reitoria, assaltos e todo tipo de acontecimentos, visando a transformação destes em uma seqüência de cenas que assistimos diariamente e ansiosamente, aguardando seu desfecho, quase que participando dos seus desvelamentos e aguardando seu final. Sim, o final é o momento mais aguardado, assim como qualquer trama acompanhada nas pequenas ou grandes telas, sendo essas duas, soldados da reificação da arte e da comunicação contemporâneas.

Não há como escapar. Mesmo desligando-se desses veículos a vida em sociedade continua. Como já citei em outro texto, “cada telespectador carrega em seus olhos uma tela, na qual o que assistimos é o mesmo que nas grandes emissoras”. Torna-se impossível tampar os ouvidos aos comentários sobre o acontecimento do momento. No ônibus, no trabalho, na escola, no ambiente familiar, na rua... O que se ouve e observa é a reprodução de tudo o que é despejado pela comunicação de massa. Aqui, o espetáculo antecede a vida cotidiana, mas procura, dialeticamente, manter a impressão oposta.

Outro aspecto aterrorizante é o fato de que o telespectador, em nenhum momento, desconhece o desfecho da história em destaque. Como nos filmes, o que se espera encontrar no final é sempre o que se encontra fatalmente. Da mesma forma, a notícia transformada em espetáculo também carrega essa característica do sempre igual. A impressão causada por tal recurso é de que, mesmo nos acontecimentos mais cruéis e nas tragédias mais fatais, a normalidade sempre cumprirá, de forma absoluta, seu papel na vida cotidiana. Podemos, sobre essa conclusão, citar as palavras de Adorno:

Todo espectador de um filme policial da televisão sabe com absoluta certeza como será o final. A tensão é mantida apenas superficialmente, o que faz com que seja impossível obter um efeito sério. Ao contrário, o espectador sente estar num terreno seguro por todo o tempo” (Adorno, "Television and the Patterns of Mass Culture").

O caso de Isabella já possui seu desfecho. Não sabemos sobre seu assassino, mas sabemos que o mesmo será descoberto. Imediatamente a história perderá sua importância, dando lugar a um novo acontecimento, sempre apresentado de forma fragmentada, diariamente, massacrando o telespectador com uma falsa tensão.

Outro ponto a ser observado é a arbitrariedade na veiculação do caso Isabella, pois esse, caso não fosse veiculado, não faria a menor diferença para o público dos grandes meios de comunicação. O que temos aqui é a seleção de um acontecimento que, poderia-se afirmar, surge em nossa sociedade frequentemente e beirando a banalidade. Sei que tal afirmação não possui a menor base empírica, mas há de se concordar que desgraças desse tipo dificilmente seriam casos isolados em uma sociedade de população tão expressiva em termos numéricos. Se o problema são números, me apego a esse argumento. Ao ser escolhido, arbitrariamente, o acontecimento imediatamente vira espetáculo com suas estrelas principais e coadjuvantes. Contudo, não podemos negar que nem todos os acontecimentos transmitidos surgem dessa forma arbitrária, pois alguns são transmitidos, fatalmente, pelo seu impacto social, como o caso ocorrido há quase um ano com o avião que colidiu no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Nesse caso, o acontecimento deve ser envolvido pelo formato cinematográfico padrão dos meios de comunicação, mantendo seu compromisso com o espetáculo. É o preço a ser pago até mesmo pelo inevitável no mundo da comunicação de massa.

Em um mundo onde a informação tornou-se refém do espetáculo não há mais lugar para o real. O que se observa é a predominância de uma fantasia constante. No momento em que a fetichização se apropria da informação, vemos os fatos cederem lugar aos boatos, transformando a vida naquilo que a indústria cultural deseja que ela seja. O caso da menina Isabella é apenas um exemplo de como a fragmentação da vida guia as mentes vazias. O caminho trilhado até aqui parece assustador quando se pensa que o caso em si não teria a menor relevância na vida das pessoas, ao menos que seja transformado em espetáculo pela mídia. Nem mesmo uma tragédia de proporções maiores tornaria-se relevante. A vida, fora da fantasia, surge como a negação do espetáculo e do que agora é tomado como real. Não se espera mais nada daquilo que não passa pelo mundo fantasioso dos meios de comunicação de massa, podendo-se até mesmo pensar que, no final das contas, não há mesmo uma morte real sobre a qual lamentar. Não há como lamentar um morto estando na mesma condição. O espetáculo aqui surge como o disfarce salvador de uma vida paradoxalmente fúnebre.